Através da janela do táxi que me leva do aeroporto ao hotel, em Delhi, a primeira e onipresente imagem que me aparece é a nuvem que baixou na capital encobrindo as ruas e o céu. Não consigo saber se o que está acima das nossas cabeças é céu azul ou se vai chover hoje. Se a noite terá estrelas ou se a lua estará nova, crescente, cheia ou o quê.
Tudo que vejo é névoa marrom-alaranjada. Por trás dela, quando aperto os olhos, vão se mostrando em segundo plano os vendedores de frutas, as placas de hotel e de lojas de celular, os fios de luz emaranhados numa imensidão de gatos-net, as vacas abrindo a boca num mugido mudo e solitário, motocicletas, crianças.
O táxi roda pelas ruas com o ar condicionado na tora. Impossível, também, saber a temperatura do lado de fora do carro. Penso naquela imagem turística clássica na qual a riqueza da cultura indiana aparece sintetizada num oceano de sáris coloridos a cobrir os corpos das mulheres - uma memória que na minha cabeça mistura as fotos da National Geographic dos anos 90 com as visões da minha primeira visita à Índia, dez anos atrás.
Em abril de 2024, a imagem esterotípica de Delhi é outra, uma imagem na qual o oceano de roupas rosa-turquesa-amarela troca de lugar com um véu de poluição salmão-claro cobrindo o mundo.
Salmão-claro é a principal cor dos hábitos monásticos que revestem o corpo dos santos indianos.
Não duvido que estes santos ancestrais cheios de habilidades proféticas tenham previsto há dois mil e quinhentos anos um futuro no qual o próprio ar da capital do país seria tomado pelo tonzinho pastel das suas vestes. Afinal de contas, a sociedade indiana é território mundial dos grandes mahasiddhas, sábios com uma compreensão da realidade tamanha que (acredito) são capazes de amolecer as leis da física e enxergar através das fibras do tempo.
Não é coisa do passado. A Índia não só produziu – a Índia continua produzindo mahasiddhas. Entre a fumaça dos escapamentos e a montanha de garrafas PET entupindo os esgotos a céu aberto, a cultura espiritual indiana segue dando nascimento - ou asilo - a um grupo de pessoas cujo conhecimento sobre o potencial da mente humana é minha principal fonte de esperança neste samsarão também conhecido como mundo ou vida.
Não sei muito bem o que essa esperança significa nesses dias tão novos no qual o apocalipse climático definitivamente se instalou entre nós. Faz sentido gastar tempo com o espírito enquanto o mundo conhecido derrete? Que tipo de espiritualidade pode nos ajudar no antropoceno?
As notícias pulando da tela do celular informam: a temperatura chegou a 52.9 graus Celsius ontem em algumas partes de Delhi. As águas no Rio Grande do Sul voltaram a subir.
Um milhão de reais de para quem acertar a resposta sobre prática espiritual em tempos de mudança climática. O que sei, entretanto, é que entre o paradisíaco passado ancestral e o distópico futuro apocalíptico a minha esperança continua viva.
Tento imaginar o que o Buda nos diria se estivesse aqui, hoje.
Pergunto-me se o Buda teria uma conta no Instagram.
Quais soluções estaria propondo para os temas ambientais.
Quem seriam os seus discípulos.
Na estante da recepção do Monastério feminino no qual vim passar meus últimos dias de viagem, encontro volumes traduzidos do Dhammapada, a famosa escritura onde o Buda apresenta em verso os seus ensinamentos essenciais. Me agarro num dos exemplares e vou lendo página por página até encontrar por acaso um dos meus versos preferidos. Dois mil e quinhentos anos depois de sua passagem pela Terra, os versos do Buda continuam me ajudam a viver neste mundo em fervura:
Deixe de praticar ações não-virtuosas.
Pratique ações virtuosas.
Compreenda profundamente a sua mente
: este é o ensinamento do Buda.
Encontrei o exemplar do Dhamappadha enquanto esperava o táxi que me levaria de volta à vila de Bir. Tive que ir embora às pressas e com o coração apertado. Há cinco anos que sonhava voltar ao Monastério feminino criado pela minha musa budista máxima, mas dessa vez não deu.
Parti no dia seguinte por causa do calor.
Não contava com a nova variável climática. Cheguei ao monastério muito inocente e entendi, já no primeiro dia, que estava dentro de uma panela de pressão acesa em fogo alto. É difícil explicar: se você se expõe por muitas horas e sem proteção, o calor que penetra no corpo vai se entranhando de um jeito cumulativo. À noite, em volta da mesa de jantar, notei que uma das outras visitantes estava meio passada, o rosto pálido com gotas de suor, não sei se tenho febre ou se é só o clima.
Na hora de dormir, o teto do quarto refletia de volta para a cama a quentura que o telhado de cimento e pedra tinha absorvido durante o dia, projetando ondas de delírio que eu só conseguia acalmar molhando uma camiseta de algodão e colocando na testa. Achei que ia desfalecer, sei lá.
Experimentei a sensação de desespero e entendi um pouco melhor o reino dos infernos.
Coloquei as mãos na barriga, respirei conscientemente.
Experimentei também a poderosa capacidade que a mente treinada tem de sair das suas criações. Com a respiração concentrada, o inferno desapareceu. No lugar dele, uma resolução lúcida e calma, muito calma:
amanhã vamos embora porque não é boa ideia ficar doente numa viagem solo para a Índia.
De volta a Bir. À noite, abro a porta que dá para a sacada e coloco uma cadeira de plástico do lado de fora. Meu quarto fica no segundo andar do hotel, na rua principal da cidade.
Dia desses me confessei para um amigo, sabe, de vez em quando tenho vontade de virar monja. O menino me olhou com olhos enormes, o rosto jovem contornado pelo cabelo encaracolado. Sei lá, não é bem assim, ele respondeu, cada pessoa é diferente. Às vezes pode ser mais benéfico você sair andando pelo centro caótico de Nova York recitando mantras em silêncio.
Ainda na sacada, tiro o rosário de preces - o japa mala - da bolsa e começo a fazer as recitações. Buzinas e barulho de construção. Os carros vão passando lá em baixo, as montanhas se escondendo por trás da fumaça dos escapamentos. As primeiras recitações terminam; começo uma nova rodada de preces.
Monges passam de mobilete, os cachorros que dormiram ao longo do dia começam a acordar. Vacas vacas vacas. Latidos. A segunda hora termina, agora a cidade se acalma enquanto vou no caminho da terceira rodada. As luzes se apagam. O comércio fecha. Gatos atravessam a rua.
A cidade está totalmente às escuras quando finalmente termino a última sessão de prática. Continuo na varanda por mais um tempo antes de ir pra cama. Os fios de luz emaranhados nos postes encontram a paz enquanto os seres humanos dormem. Por um tempo, por um tempo bem curtinho, esqueço que não estou num monastério.
Recomendações & notinha
Que histórias contaremos para dar sentido à nossa existência durante a crise climática? Este texto do
discute ficção e antropoceno:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Você já é monja, mulher
Ondas de calor são terríveis e perigosas. Sinto muito pelas pessoas, vacas, gatos e todos os seres em Delhi. Fez bem de retornar à Bir. É como a Haraway diz, é ficar com o problema, com todo o horror e toda a alegria. Obrigada pela edição 🌿