Faz um dia escuro e chuvoso em Curitiba. Sinto que me habita um passado distante, algo como um gelado bloco contínuo como esta tarde de hoje. Curitiba é minha infância, minha infância é Curitiba e Curitiba é assim.
Brasília, a cidade que escolhi por vontade própria na vida adulta, logo depois, é o extremo oposto: um céu azul, imenso e aberto. O Alentejo, onde vivo hoje em dia, também.
Nem todas as pessoas guardam na infância as melhores memórias. Sou desse outro tipo, um tipo de gente que ficou mais feliz depois de velha e que sabe disso muito bem.
Há mais ou menos um mês, assisti pelo YouTube uma entrevista que a Andréa del Fuego deu para o Marcelo Tas no programa Provoca. A entrevista é toda ótima, mas dela guardei principalmente uma passagem na qual a escritora é questionada a respeito dos temas sobre os quais gosta de escrever.
Andréa responde que gosta de escrever sobre a força que une ou afasta as pessoas, sobre desejo, magnetismo. Por que?, o Marcelo pergunta, e ela diz que não sabe. Só sabe que gosta de escrever sobre isso.
Penso nos autores e nos seus temas. Kafka com a burocracia, o isolamento, a solidão. Os livros esquisitos do Murakami que parecem sempre o mesmo livro, um pouco também como os do Paul Auster. Teve uma época em que só li o Paul Auster; hoje em dia não consigo distinguir um título do outro, fica só aquela impressão, aquela voz do Auster num continuum inconfundível dentro da minha lembrança.
Por que a gente gosta de escrever sobre o que a gente gosta de escrever?
Mal cheguei aqui em Curitiba, fui convocada para uma visita ao sótão de casa acompanhada da Mamãe. Toda vez que venho, Mamãe me força a dar cabo do maior número possível das caixas que larguei aqui, na casa dela, e oferece sua valiosa ajuda para a missão.
Desta vez a escolhida da Mamãe foi uma caixa gigante cheia de negativos, esse trambolho tá aqui há anos, minha filha, vai fazer o quê com isso? Vamos jogar, vamos?
Antes do digital virar a regra, fui fotógrafa. Trabalhei bastante, fiz exposições, revelava meus negativos e ampliava fotos desde os 17. Aos 22, ganhei uma bolsa para estudar fotografia e artes visuais por um ano numa importante escola de Nova York.
Isto foi em 2002; eu tinha 22. Volto aos negativos agora, aos 44. Veja bem, foram 22 anos como fotógrafa e agora mais 22 sem ser fotógrafa; a absurda simetria numérica me faz achar tudo legal, tudo místico, tudo cósmico, fico hipnotizada, quero começar logo.
São muitos negativos. Cada rolo de 36 negativos revelados vem acompanhado de uma folha de contato que eu mesma fazia no laboratório: uma espécie de fotografia com todas as imagens tamanho 35mm daquele rolo, que depois eu olhava e editava.
São centenas, são mesmo milhares de negativos e respectivas folhas de contato. Era a época do filme; precisávamos escolher o que registrar. Ali, nas caixas, encontro concentrado o mundo pessoal das coisas que olhei e entendi que eram interessantes o suficiente para merecer o meu clique aos vinte anos. Fotos de manequins embrulhadas em plástico, construções abandonadas. A preferência pelo que era quebrado, pelo abandonado pelo arruinado pelo destruído. Em vez de foto idílica de gato paisagem passarinho bebê, tem lixo, açougue, ferida.
Da época de Nova York, encontro umas imagens de Chinatown e do metrô - sempre fotos de metrô - e sobretudo encontro muitas, realmente, milhares
o que mais encontro, disparado
milhares, literalmente milhares de fotos de
mim.
Por que a gente gosta do que a gente gosta?
Setembro de 2024, ontem. Estou a meio caminho de um romance novo. Sinto prazer ao escrevê-lo, a protagonista se chama Maristela e tenho uma ligação cada vez mais forte com ela, mas nas últimas semanas passei a ter a impressão de que ela estava precisando de alguma coisa. Não sabia direito o que era. Tentei modular um tom novo de voz, encontrar novas caracterísiticas físicas, relacionamentos, até que entendi que o que faltava nela era
eu.
Eu sentia falta de me transformar um pouco na Maristela.
No universo da fotografia, minha exploração de décadas sempre foi o auto-retrato. Lembro precisamente: tirar fotos de mim mesma era uma necessidade, virou meu projeto principal e tema das minhas duas exposições. Se eu tirasse milhares de fotos de mim, se eu olhasse bem de perto, muito de perto, mesmo, quem sabe - quem sabe? Eu podia entender quem
sou.
Vinte e dois anos depois, descubro que as coisas não mudaram muito. Voltar para Curitiba me devolveu, estou condenada a ser quem sou. A gente gosta do que gosta.
Queria muito escrever um romance imaginativo com uma personagem descolada o máximo possível de mim. Mas a realidade do desejo se impõe, e isso é o que temos para hoje: abri o manuscrito e comecei a transformá-lo num texto híbrido que mistura imaginação com memórias da minha experiência. Substituí o nome da Maristela pelo meu e acho que podemos seguir em frente.
A gente gosta do que a gente gosta, afinal.
E você?
Vai, me conta da sua obsessão.
Lançamento do 108 em Brasília e São Paulo
BRASÍLIA - 28 de setembro (sábado), às 17h na Circulares Livros. Bate-papo com Julliany Mucury, doutora em letras pela UnB.
SÃO PAULO - 03 de outubro (quinta), às 18hs na Livraria Na Nuvem.
Enquanto isso, você pode continuar comprando os livros por aqui, ó:
-Quer um ebook? A versão em Kindle do 108 está disponível aqui, no site da Amazon.
2 notinhas
Na próxima edição do Sofá vou responder algumas perguntas que vocês me fizeram nesta edição aqui! Adorei a experiência de receber as perguntas, e quero experimentar mais vezes.
O Sofá da Surina é uma Newsletter semanal que chega até você três vezes por mês. Sábado que vem é dia de descanso do Sofá. Isto quer dizer que nos vemos de novo no dia 5 de outubro.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima
A minha obsessão são os caminhos intrincados que nos transformam no que somos. Não apenas escolhas, conscientes ou inconscientes, mas aquele emaranhado de trilhas geracionais, psíquicas, psicossomáticas, buscas espirituais que não sabemos bem, mas que vamos descobrino, karmas familiares, sociais, pessoais... e assim por diante. Sempre são um pouco de quem eu sou, uma faceta, um indício, mas nunca sou eu, como eu me entendo ser.
PS: a minha mãe, que como a sua gentilmente mantém meus pertences de uma vida que já passou, faz o contrário: nunca quer se livrar de nada, mesmo quando peço, ou quando vou lá pessoalmente. Dá um jeito, arruma uma desculpa, e caixas e caixas continuam a ocupar os armários dela com minhas tralhas. :)
Adorei saber mais sobre você. Você tem escrito seus próprios traços biográficos em vida. Acho isso muito importante, pois como seus autorretratos, são você e suas nuances.
Engraçado é que eu te olho e veja uma mulher judia... Remete às fotos de judias durante a Segunda Grande Guerra. Além disso, lembra também minha mãe em sua juventude (Dona Terezinha, mulher que deixou um grande legado e muitas boas lembranças!).
Suas reflexões me atingiram em cheio: sobre o quê mais gosto de escrever? Talvez seja a aventura de viver intensamente cada momento. Por isso, os contos e os poemas.
Meu sábado começou muito bem, Surina. Grande abraço!