Virei o ano com uma resolução tão forte que virou realidade três dias depois: comprar uma bicicleta nova.
E isto diz muito, mas não tudo.
Eu podia ter comprado uma bicicleta porque quero emagrecer. Ou porque quero começar um 2023 mais saudável. Eu podia ter comprado uma bicicleta porque vou fazer quarenta e três anos e é hora de introduzir uma rotina disciplinada de exercícios físicos na minha vida.
Mas nada disto é verdade.
Nesta época de inverno os dias acordam com uma névoa cobrindo o horizonte. Pulo da cama para a porta e ainda de roupão olho a nuvem grossa sobre a terra. Um desejo me toma; eu deixo. Quero desaparecer em tudo que existe.
A verdade é que comprei uma bicicleta nova para estar perto de mim.
Para realizar a profecia das manhãs de janeiro, sei que vou precisar mais do que pedalar. Vou precisar pedalar muito, muitas horas. Fazer uma viagem de bicicleta quando a primavera chegar, quem sabe. Preciso pedalar o suficiente para que meu corpo reencontre uma espécie de sabedoria esquecida entre as escrituras das glândulas mudas, para que a respiração faça as pazes com os batimentos cardíacos e com os músculos das pernas. Preciso pedalar para que meu cérebro esqueça a lógica das listas de tarefas, dos sonhos, dos ressentimentos, dos problemas insolúveis e assim, desobrigada dos limites criados por aquela que acredito que sou, a bike encontre a estrada desimpedida e me leve de volta aos céus.
A bicicleta monástica
Escondida no meio de outras 1618 opções, a Specialized preta e prateada anunciada no item Bicicletas Usadas do OLX não vinha com grandes pretensões. Depois de dois anos e meio entrando no site quase toda a semana, entretanto, sou capaz de ler os sinais.
Quadro S - o anúncio dizia -, e a vendedora era uma mulher.
-Acho que encontrei a minha bike!, saí gritando para ninguém. A casa estava vazia; meu companheiro comprava arroz e pepino no supermercado.
Se eu fosse homem, provavelmente teria conseguido comprar a bicicleta em 2020. Mas Mulher, Ciclista & Viajante é uma combinação de substantivos improváveis. Das mais de mil de bicicletas para adultos no OLX de Portugal, 99% é tamanho M ou L, com geometria e selins preparados para a anatomia masculina.
E há algo que nós, mulheres ciclistas, aprendemos rápido. Quando o quadro é grande e o selim é errado, o corpo tem que se virar com compensações muito loucas para manter a postura no pedal. Multiplique por horas, semanas, e o resultado virá: dor na cervical, lesão na panturrilha e vagina dormente.
No dia da compra, a van ficou estacionada numa rua arborizada de Lisboa enquanto caminhei até a esquina tentando imaginar como a vendedora seria pessoalmente. Lee me deu a mão, o sinaleiro abriu e a bicicleta apareceu lá longe, orgulhosamente encostada ao lado de um homem careca de blusa laranja:
-Ela pede desculpas. Teve que buscar a filha na escola e me pediu para te encontrar.
João conta que a vendedora usou a bicicleta para pedalar pela costa de Portugal com o cachorro. Não tenho qualquer referência visual da dona - o anúncio vinha sem foto -, então imagino uma mulher de trinta e poucos anos, cabelo castanho preso num rabo de cavalo pedalando com um cachorrinho vira-lata de cestinha pelas estradas do litoral português.
A mulher que imagino, claro, é uma versão de mim. Pensar nela me dá alegria. Talvez um dia eu também possa ter um cachorro, talvez um dia nós dois possamos sair viajando de bicicleta por aí. Quantos quilos de ração vou ter que levar?
Subo no selim e saio pedalando para testar a bici, mas só por questão de etiqueta. Sei que ela é perfeita e sei que é minha mesmo antes de subir no selim, então tiro um envelope cheio de notas de dez euros. João se despede depois de contar o bolinho de papel, o casaco laranja desaparecendo por trás do posto de gasolina enquanto nos embolamos num rolo de corda tentando amarrar a bicicleta para levar na van.
Pelo buraco que fica entre as rodas e a corrente, um sujeito de vestido marrom me olha. Olho de volta:
-Deus te abençoe.
-Bom ano
, ele responde, e continua a me olhar até dobrarmos à direita no final da rua. À medida que a van avança me levando de volta pra casa, assisto a imagem do frei franciscano anônimo desaparecer por trás das árvores como se nunca tivesse existido.
Francisca
, minha nova bicicleta, é uma promessa.
Prometo o que dá para agora. Prometo que consigo te ouvir, oh, bicho que se mexe na minha barriga - oh! grande bicho que anuncia mudanças. É uma promessa verdadeira, por isso volto a um dos meus poemas preferidos: “você, estrada na qual eu entro/Olho em volta, estrada, e acredito que você não é tudo que está aqui/O desconhecido está aqui também”. Prometo que vou te dar espaço para espichar os braços. A estrada, o bicho, eu. Prometo que vou tentar fazer menos mal pra mim e pros outros, esperar menos de mim e dos outros. Tomara que dê certo. Sobretudo, prometo que vou tentar abrir uma porta para a estrada, com as bençãos de São Francisco, afinal de contas há sempre um animal inocente perto dele. São Francisco da Liberdade. Quem sabe em 2023 eu possa me perder de mim. Vai dar certo, eu sei, de algum jeito vai dar, porque as melhores coisas que encontrei na vida foram em cima de uma bicicleta.
Já que não posso fazer promessas para ninguém mais além de mim, desejo. É mais mais sincero desejar do que prometer. Desejo o Desconhecido Maravilhoso pra você neste ano em que alguma esperança começou a aparecer no horizonte. Então te deixo com o começo daquele poema do Walt Whitman que é bonito demais, por isso não tenho coragem de continuar traduzindo. Diz assim:
Afoot and light-hearted I take to the open road,
Healthy, free, the world before me,
The long brown path before me leading wherever I choose.
Henceforth I ask not good-fortune, I myself am good-fortune,
Henceforth I whimper no more, postpone no more, need nothing,
Done with indoor complaints, libraries, querulous criticisms,
Strong and content I travel the open road.
Toda semana
… ou quase. A partir de janeiro e ao longo de 2023, o Sofá vai chegar na sua caixa de email aos sábados de manhã, três vezes por mês. O último sábado vai ser tempo de descanso.
A ideia é trazer pra cá textos curtos, outros mais longos e uma edição especial todos os meses sobre escrita dentro de uma editoria que estou chamando de Escrita contemplativa - uma conversa sobre as coisas que vou descobrindo à medida que tento trazer minha experiência de meditação para a escrivaninha.
*O trecho do poema do Walt Whitman no início deste tópico é uma tradução livre a partir do original em inglês. Mil desculpas pela pobreza da minha versão; este poema merecia alguém mais bem preparado, mas não resisti à tentação de fazê-lo disponível para os leitores que não falam inglês. A versão original de Song of the open road você encontra aqui.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Um dos meus pesares é não andar de bicicleta, uma não habilidade que me limita, Pri ia me ajudar quando estive em Portugal, não deu tempo, mas quero desbravar isso em 2023 e sentir a liberdade de “strong and content travel the open road”. Longa vida à Francisca!
Ao infinito e além 🚴♀️🐈❤️🙏🏻