Tudo bem?
Dessa vez venho aqui para sair do armário e confessar: sinto alegria.
Mais precisamente, sinto alegria há 8 anos. É um passarinho pequeno que voa livre dentro da caixa torácica, sinto a alegria principalmente pelo peito e sei que você sabe o que eu digo porque já foi criança. Todo mundo já sentiu alegria.
Sinto alegria quando tudo vai bem, o que na verdade é quase nunca porque sempre tem uma coisa pra consertar na vida e tudo, tudo bem mesmo é algo que não existe. Mas sinto alegria também quando a vida vai mal e é cinza, e para minha surpresa a alegria está bem aqui, borbulhando loucamente, agora que começaram a aparecer essas palavras que eu não ouvia antes. Tipo: censura, golpe, ditadura, ele sim.
Deve ser porque o contraste é grande. No cinza do horror a alegria, quando vem, vem com força me atravessando pelo sangue. É uma alegria soda cáustica que limpa por dentro o chorume causado pela falta de amor e devolve o gosto pela existência, dizendo só isso
: estamos todos aqui.
Acho que a alegria é um dos sentimentos menos compreendidos que existem. Felicidade é uma coisa grandiosa que se respeita, ao contrário da alegria, própria dos sonsos, alienados e frívolos. É proibido sentir alegria quando as coisas vão mal. Quer dizer, pelo menos é assim que eu pensava.
As tradições orientais me ajudaram a ver de outro jeito. A alegria está lá, respeitadíssima. Em escrituras indianas como o Ashtavakara Gita, por exemplo, ela aparece como uma qualidade que nos surge naturalmente quando olhamos e compreendemos profundamente a realidade. Ou na tradição budista, que nos convida a contemplar a maravilha de estar dentro desse corpo humano cheio de possibilidades e de encontrar nessa contemplação a resposta - a alegria de viver.
Hoje não é o dia mais fácil de escrever essa Newsletter. Um cinza subiu das catacumbas. No meio dele, minha alegria é um peixinho dourado que não tem razão nenhuma pra existir.
Mas ela existe, porque a alegria é rebelde.
Continuaremos fazendo nosso jardim. Continuaremos desenhando, escrevendo, olhando nossas vós pentearem o cabelo, devagar, de fora da janela a chuva cai. O gato dorme peludo no tapete da sala, cultivaremos nossa alegria, que caminha aqui, junto com a tristeza, com a revolta, com o não saber, tudo tem espaço em mim.
Então eu sinto alegria.
Cultivando a alegria
- Thich Nhat Hahn é um monge zen vietnamita que vive há mais de 40 anos no sul da França. Vejo a vida dele como uma força de tradução entre duas linguagens: a prática espiritual e a ação no mundo. Não foi uma tradução fácil, e aqui nesse vídeo ele fala sobre suas décadas em exílio (que duram até hoje), sua experiência de pacifismo durante a guerra no Vietnã, a relação com Martin Luther King, e sobre sua prática espiritual como chão para uma vida com alegria.
- Relatos de um gato viajante, de Hiro Arikawa, é um romance delicado e poderoso narrado (em grande parte) por um gato que viaja com seu dono pelo Japão. É uma fábula sobre amizade, morte, vida felina, vida humana e... o poder da alegria, claro.
- Em inglês, Mr. Happy. Para salvar o dia. Deviam botar alguma coisa no chá dos ingleses que faziam animação na década de 70.
ela, que levanta o sol
Um ano depois, finalmente consegui terminar o rascunho dessa obra que comecei no verão passado. Mudou tudo mas ela continuava viva, era hora de terminar. Quem podia prever? Há um ano eu fazia o rascunho num ashram, hoje moro numa vila no interior de Portugal com um gato cinza e uma plantação de tomates. Mudou tudo, mas nem tudo. Outro verão, por aqui continuamos nascendo o sol todo dia.
Ah! E que todos vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,