5 de novembro de 2024, segunda-feira. Madrugada em Florianópolis. De olho meio-aberto meio-fechado, assisto Sex and the City na cama e levo a mão direita ao rosto. Busco aquele pedaço de pele que fica entre a boca e o nariz, logo acima do lábio superior – ali, onde tenho uma pintinha marrom de nascença. Não sei bem o que quero com o gesto. Só desejo tocar a pinta, encontra-la como quem encontra uma velha
amiga. Grande parte da nossa sanidade mental deve derivar desta confirmação cotidiana do que é conhecido, começando pelo corpo. Se algo muda de repente – vamos supor: se você acorda com um terceiro olho entre as sobrancelhas -, parece que trocaram o nosso corpo por outro; o mundo inteiro fica de pernas pro ar. É preciso garantir que estamos em terra firme. É preciso garantir que ainda somos quem a gente acha que é. Estes são meus dedos dos pés, o segundo continua um pouco maior do que o primeiro. No último mês me apareceram uns fios brancos. Minha pintinha, tudo bem com
você?
Não, nada está bem comigo. Para o meu espanto, para meu supremo espanto, não a encontro. A mancha que me acompanha desde que sou gente deu lugar a uma saliência em forma de meia esfera,
Meu Deus, o que é isso? Agora já deixei de prestar atenção no seriado, concentrada em negar que algo tenha mudado na minha cara, é impressão, a pinta sempre foi assim, mesmo sabendo que o inevitável virá em seguida
: o espelho do banheiro me devolve a imagem do que a mão já viu.
A pinta cresceu de repente. Do que um dia foi, sobra quase nada. Ela agora não passa de uma mancha irreconhecível em cima de uma bolota bem maior. Uma verruga.
Busca do Google: pintas que crescem rápido.
Resposta: se a sua pinta cresceu rápido, consulte um médico pois pode se tratar de um caso de câncer de pele.
Dizer que me vieram pensamentos seria mentira. Também não era medo. Senti mais como se eu tivesse me transformado numa televisão fora do ar transmitindo informações de todos os canais ao mesmo tempo - um corpo estranho cresceu no meu sem pedir permissão e lá se foi o sono. Um flash seguido de outro e outro e outro e outro
tenho que marcar um médico urgente e se eu tiver que fazer cirurgia quero ver o Lee preciso voltar pra casa quero os meus gatos antes de morrer tenho que escrever pelo menos mais dois livros e comer ramen e sushi e pad thay e comida vietnamita e ir para a Islândia fazer um hiking o mundo tá meio trash mas ainda tenho tanta coisa legal pra fazer
, né? Acordei no outro dia. Não sei bem o que aconteceu. Desliguei enquanto aquele trem passava.
Voilà: a Morte.
O que é que eu não faço para esquecê-la?
Basta a lembrança da sua existência sob a forma de uma verruga inesperada e bum. Meu Deus, vou morrer. Como se a morte já não estivesse vivendo aqui. Tomo cinco vôos domésticos pra lançar livro, inicio suplementação de whey, preparo este texto, tudo para não lembrar dela. A morte é um pouco como esta verruga; ela também cresce no nosso corpo todo dia sem pedir permissão.
Sobre a morte, estas são as minhas ilusões de estimação:
- que só vou morrer quando estiver pronta
- que será indolor
- vou poder fazer tudo que eu quero antes de morrer
- que vai ser bom, afinal de contas o corpo é um treco pesado
Uma vez sofri um acidente de bicicleta e saí voando. Isto foi em 2016 em Brasília; eu ia a caminho do trabalho. Quando pousei, a parte de trás da cabeça quicou três vezes no chão. Era como uma bola, lembro exatamente, poing poing, daí
asfalto. Eu, estendida de barriga pra cima. E foi assim, no auge da dor e do choque que aconteceu o imponderável
: o corpo esvaziou até ficar leve, muito leve. Ouvi pessoas em torno de mim, ligações chamando ambulância, mas tudo era irrelevante e o que importava era ser leve como um balão. A motorista disse que passei três minutos desacordada, mas nunca perdi a consciência. Difícil, mesmo, foi abrir os olhos e regressar para o samsara.
Naquele dia, perdi um pouco o medo da morte. Um pouco.
Na noite que antecedeu o meu encontro com a nova verruga, tirei a carta da Morte no tarot. Acho que isto aumentou o meu susto, como se ter escolhido a A Morte tivesse sido o prenúncio do meu destino – a verruga, claro, sendo um câncer fatal.
Decido, então, pintar a minha própria versão do arcano maior. Penso numa mulher de coque sentada com um gato preto lendo um livro - sem pressa, claro, porque a morte é sem agitos. Depois esboço uma mulher de costas, magra, de roupa preta, de quem não se vê o rosto. Também tento uma mulher vestindo um fascinator de peixe morto. No fim escolho, escolho seguir adiante com o esboço menos óbvio.
É uma pintura zen, quase abstrata. Gosto dela, imensamente. A caveira preta repousa numa mesa ao lado de um vaso de onde saem duas orquídeas, branco com rosa, como as que a minha mãe cultiva em casa. A mesa fica num quarto cor de cimento, vazio. Neste mesmo espaço neutro as duas convivem: a morte perto das flores; as flores contra o frio do cimento.
Há uns dias uma amiga me disse algo bonito. Entendo agora, só agora, que pintar a obra foi meu jeito de traduzir o seu enunciado, trazendo A Morte para um pouco mais perto de mim. Ela disse isso: sabe? Elas são interligadas. Na verdade eu acho que existe uma suavidade na morte. E a vida é a vida, né? Existe uma dureza na vida.”
108 assinado & obras
Estou entrando na reta final da minha passagem de quase três meses pelo Brasil. Na próxima sexta eu entro em retiro antes de pegar o vôo de volta para Portugal. Se você quiser uma cópia do 108 assinada, pode pedir por aqui até segunda à noite:
Se você mora no Brasil e quer ter uma das minhas ilustrações, o momento é agora - é bem mais fácil e barato enviar por correio de solo nacional. De originais a posters, existe todo tipo da faixa de preço e tamanho. Me escreve um email, tá?
Notinha e recomendações
- Todo o tempo que existe (publicado pela Relicário) é um ensaio autobiográfico no qual a Adriana Lisboa tece sua narrativa a respeito do luto, da vida e do amor a partir do falecimento dos seus pais. Um dos melhores livros que li este ano. O livro está promoção pelo site <3
- Descobri esta Newsletter que tem um gosto de casa - recomendo para quem gosta de ler sobre bastidores da escrita:
- Durante este mês de novembro, o Sofá da Surina tem uma editoria toda baseada em cartas de tarô. Na primeira edição escrevi sobre o Seis de Espadas para falar sobre transição. Esta semana foi a vez de encarar o meu tema preferido, usando como desculpa o o arcano d’A Morte. Finalmente, o próximo sábado será a vez de um texto do Surina Responde sobre o 3 de Ouros para abordar a pergunta que um leitor me enviou aqui sobre levar uma vida criativa e ganhar dinheiro ao mesmo tempo.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Acabei de ler 108, já quero ler o livro da bicicleta (desculpa, esqueci o nome mas lembro da sensação do nome me lembrar um pouco de liberdade). Obrigada por mais uma news, Surina. Gosto muito da sua escrita, ela tbm me dá vontade de escrever (dificilmente escrevo). Brigadão! <3
Das cartas mais profundas do baralho. Obrigada ❤️