#32. A mulher que olhava por dentro da gente
Uma historinha sobre meus ataques de pânico e a clarividente que consegue resolver tudo
Algumas semanas atrás conheci uma mulher que consegue olhar por dentro das pessoas.
Tenho certeza que é fruto do bom karma que acumulei ao longo de uma década de dedicação à espiritualidade: na maior parte do tempo não acontece nada, mas quando aparece algo por aqui é sempre daquele tipo que redime o tédio de muitas vidas passadas.
A mulher estava sentada na primeira mesa do terraço do restaurante. Vestia uma blusa azul clara e um gorro cor-de-rosa; era de tarde, a cozinha tinha fechado e já não servíamos mais almoço. Com ela havia três pessoas mais jovens, entre os quarenta e os cinquenta anos.
Os quatro se sentaram perto da grande estátua do Buda que fica ao lado da escada e pediram uma fatia de bolo de cenoura e outra de chocolate com três garfos. Quinze minutos depois fui recolher os pratos vazios, mais alguma coisa, eles estavam em reunião e demoraram pra responder, a cappuccino, please, respondeu a senhora com sotaque sei-lá-de-onde. Polonesa? Húngara? Alemã?
Senti que ela enxergava por dentro de mim e que o olhar abria uma incisão no meu peito
- Just a cappuccino?
Em vez de responder, a mulher continuou conversando com a outra de cabelo liso que estava sentada na cadeira ao lado.
Com o buraco agora aberto no peito, juntei os pratos com os restos de bolo, as xícaras sujas e os garfos, equilibrei tudo numa bandeja e voltei para dentro do restaurante.
Dizem que quando uma pessoa nos manda um olho gordo a energia do quebrante entra pelo peito e chega até a medula causando todo tipo de malefício e coisa ruim na nossa vida. A incisão da mulher, entretanto, era de outra qualidade. Longe das bad vibes, o olhar tinha uma precisão cirúrgica misturada à qualidade de alguém que lê nosso diário. Ela sabe mais de mim do que eu mesma.
Consultei o outro garçom que preparava o cappuccino no balcão. Você já viu aquela mulher? Ele não estava interessado. Parece que é vidente, respondeu, terminando de cortar uma fatia de bolo de cenoura. E vai dar um retiro na sexta que vem.
Quando voltei para casa depois do trabalho, às 10 da noite, notei que não estava mais cansada. Meus pés caminhavam com uma agilidade fora do comum, a vida tinha outra cor. Não que fosse mais colorida – a verdade é que era pastel.
A realidade tinha ficado suave.
A ferida aberta no peito não doía, mas era impossível negar-lhe a existência. No outro dia, enquanto arrancava os brotos de eucalipto que nascem no quintal, tive certeza que a mulher tinha aberto um portal dentro de mim.
Era um portal para meu espírito olhar o mundo mais suavemente? Ou um tipo de sangria de algo que precisava ser drenado para fora do meu corpo?
Com as mãos cheirando eucalipto, tomei uma decisão. Pode me operar por dentro, foi o que disse para o cosmos, na falta de outra coisa para dizer e sem entender direito qual tipo de etiqueta as circunstâncias pediam.
Incapaz de encontrar respostas sozinha, decidi me inscrever para o retiro com a mulher de nome desconhecido vinda de algum lugar que eu nem sabia onde era e que tinha feito uma incisão mística invisível no centro das minhas costelas.
Retiro, dia 4.
Há um campo. Neste campo, há vento. Este vento é frio. A lua está cheia. É de noite.
Não sei se é inverno fora da porta do quarto ou se está frio dentro do meu corpo.
Tenho certeza: faz frio em mim. Tenho medo mas não tenho razão para ter medo, por que mesmo tive esta ideia? Não consigo dormir.
Tenho muito medo, tenho muito medo mesmo.
São três da madrugada a ainda estou de pé. Abro a porta do quarto. O meu é o último do corredor, afastado dos demais. Dormimos num centro de retiros nas montanhas portuguesas.
Acho que vou ficar louca.
Lembro das instruções dela na sessão desta noite. Lembro das instruções do meu professor para lidar com sentimentos aflitivos. O sofrimento tem que sair do jeito que entrou, diz a mulher. Os sentimentos aflitivos desaparecem quando você olha por trás deles, diz meu professor.
Nas tradições tibetanas, as monjas de cabelo raspado levam uma vida ascética que demonstra fisicamente a renúncia à vida mundana. As yoginis, por outro lado, têm o cabelo comprido e vivem na interface com o mundo depois de treinamentos longos. Elas aprenderam a discernir, e porque têm clareza na visão é que lidam com as energias do samsara.
Entendo que este é meu momento yogini. O que será que a mulher que tudo vê está enxergando agora? Que tipo de coisa vive em mim? Será que ela acordou bichos? E agora que eles acordaram, vai conseguir manda-los embora? E se mandar os bichos embora, outros virão? E se vierem outros, serei capaz de manda-los embora?
Tenho medo. Sento na cama e faço uma prece para todo mundo que consigo lembrar. Para Jesus, para a mulher que enxerga por dentro da gente, para Deus, para o meu professor e para Nossa Senhora. Uma constelação improvável que nem eu mesma imaginei que iria um dia convocar. Meu coração fica quente. Neste momento não sinto medo.
Lembro de uma amiga que tem uma doença neurológica e há quatro anos sente dores contínuas que vão mudando de área no corpo. Depois de um tempo você aprende a não se importar tanto com a dor.
Abro os olhos e noto que o medo voltou. Relógio na parede: são três e meia da manhã.
Meu marido que acaba de acordar na Arábia Saudita manda uma mensagem que que você tá fazendo online a essas horas?, é que eu estou com medo, oito horas de ataque de pânico não é normal, darling. Ele me manda botar um incenso, uma música bem calminha e dormir, vai lá, coloca Monsoon Point pra ouvir.
Obedeço. Deito de barriga para cima, lembro das instruções do Thich Nhat Hanh e vou respirando devagar.Acordo 4 horas depois, com dor no pescoço e o sol entrando pela janela.
No dia seguinte leio uma mensagem no celular enviada pela mulher que tudo vê, estou com você, está tudo bem.
Duas semanas depois.
Passo os dias tendo ataques de pânico. Às vezes no restaurante. Às vezes na cama, antes de dormir. Às vezes a manhã inteira, às vezes a tarde inteira. Na manhã do décimo sexto dia, trabalho no atelier e sinto o pânico aparecer no peito, subir pela garganta, sair pela boca. Passo a manhã vomitando e tomando chá de hortelã.
À noite saio de casa para ver as estrelas. Moro no meio do mato e não tenho vizinhos. As estrelas no céu do Alentejo. Percebo que não tenho mais medo do escuro. Nem da imensidão. Nem de fantasma. Nem de alguém vindo me atacar.
Percebo que já não tenho medo.
Percebo, também, que tinha medo de coisas que não sabia que me davam medo. Só descubro o tamanho do meu medo agora que ele virou um buraco. Acho que era isso mesmo: eu vivia com muito medo e não sabia.
A noite é mais suave hoje. Escrevo uma mensagem para agradecer a mulher iluminada. O aplicativo só mostra uma barrinha. Pergunto para uma amiga que fez o retiro comigo
- Tentei escrever, mas as minhas mensagens não estão chegando pra ela.
- Acabou, querida. E a mulher que tudo vê já mudou de telefone.
Recomendações desta páscoa
Meu marido diz que é mais paisagem sonora do que música. Acho meio brega; de vez em quando eu ouço. Voilà a música que acalma tudo: Monsoon Point.
A Sara e a Cassimila, da newsletter
, fizeram uma edição linda falando de bicicletas & mulheres. Fiquei muito feliz de encontrar a homenagem que elas fizeram citando um trecho d'O mundo sem anéis, o livro que escrevi contando sobre minha aventura pedalando 3 meses sozinha. A edição física esgotou, mas se você ainda não leu dá para encontra-lo em ebook aqui.Fiquei enternecida com a última edição da
- a newsletter escrita pela Ana Rüsche -, na qual ela fala sobre a sensação de vazio depois que terminamos algo importante.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Boa páscoa e até a próxima,
Ficamos felizes que você tenha gostado da nossa homenagem ao seu livro e sua paixão pela bicicleta <3
Alguns textos seus mexem comigo de um jeito meio mágico, desde o livro 100 dias sobre rodas. Me fazem parar, ficar em suspensão. O de hoje foi assim. Criou um momento de stillness. Lembrei de um encontro no Caminho de Santiago com uma mulher que também me viu além. Aí parei e fui meditar. Na meditação, senti como se uma capa caísse e me vi uma menina e seus medos. Fui vendo cada um deles, o medo e a menina que sou, chorei, respirei. Até respirar fundo e me acalmar novamente. Muito obrigada pela escrita verdadeira que cria pontes e ajudam de um jeito que a gente nem entende nem consegue explicar!