Há uma linha que passa por dentro do meu e de todos os corpos, cochichando ideias e sugerindo caminhos. Ela se chama
a linha do invisível, cada corpo tem a sua e nenhuma é
igual.
É a linha do invisível que as boas videntes têm a habilidade de ler quando perguntamos sobre o futuro. Sempre é a linha – não a nossa mão - que tira a carta do tarô.
- A Torre. Vixe, sua vida está pra mudar de um jeito bruto.
Quem escolhe a carta é o poder da linha invisível.
A linha do invisível, inscrita em dourado por baixo dos nossos vasos sanguíneos, diz muito discretamente, sem alardes, vira para a direita aqui, nessa ruela, vai, e bum
: naquele beco inesperado você encontra o seu grande amor. A linha do invisível liga alguns de nós a Jesus, outros ao Buda, a Oxóssi, a ninguém em particular ou à ciência como um todo. Ela explica por que odiamos algumas pessoas e somos atraídas por outras sem razão aparente.
Na hora certa, a linha do invisível faz a minha mão estender, a sua afrouxar e a da pessoa atrás de mim na fila coçar a orelha. A linha do invisível não é igual, mas vive encostada à do destino, sendo mais um tipo de cabo.
Numa ponta está o cosmos, na outra está você.
A minha coisa preferida na vida – e eu amo muitas, muitas coisas – é o fato de que cada pessoa que existe neste planeta é absolutamente diferente de todas as outras
- disse a amiga artista do Lee num jantar em Londres no dia 31 de dezembro de 2023.
Por que você acha que é assim?
-perguntei.
Ela virou a cabeça para o lado e pegou o copo de suco esquecido na mesa.
Todos os dias venho ao atelier para me refugiar no invisível, especialmente quando não tenho resposta para perguntas que me desconsolam.
Nos últimos anos, por exemplo, estamos vivendo uma seca terrível no sul de Portugal. As pessoas que moram aqui estão preocupadas, a vendedora da loja de ferragens se despede de mim sempre assim: será que vem chuva este mês?
Pergunto-me se teremos água ou se poderemos viver aqui no futuro, na casa que edificamos sobre a estúpida ideia do para sempre. Pergunto-me se vale a pena fazer melhorias no terreno ou vender tudo, já que não se sabe o que virá.
Além da falta de água, tem o calor. No verão chega a fazer 44 graus.
Procuro respostas no Google como quem consulta um oráculo antigo
-aquecimento global no Alentejo, seca no Alentejo.
Todas as respostas são provisórias. Ninguém sabe prever com exatidão onde o presente vai dar e os impactos na nossa região. Sobre o futuro, tudo que se sabe é que o planeta vai ferver, claro.
Tento fazer minha pequena parte. Planto orleandas, castanheiro, medronhos, yuccas, maracujás, bouganvilles, cactos, árvores nativas e outras que precisam de pouca rega. É tudo que me resta para lidar com as incertezas climáticas na dimensão tangível.
Numa outra dimensão, mais sutil, refugio-me nas fotos que estão no altar. São fotos de santas e santos, a maioria dos quais não conheci nem conhecerei porque já estavam mortos antes de eu nascer.
Tomo refúgio na equanimidade deles, na capacidade que têm de permanecerem calmos e satisfeitos em situações difíceis. Eles fizeram, então também posso. Tomo refúgio no Buda, este homem de dois mil e quinhentos anos que deixou um legado imenso. Tomo refúgio, ainda, nas promessas que vivem exatamente dentro do espaço de não saber o que acontecerá, e assim faço pazes provisórias com o inescrutável.
Tomo refúgio no invisível.
Aprendi que a forma mais elevada de enxergar o meu altar é não esquecendo que todos os santos e santas, que todos os Budas são expressões de algo que já está em mim. Entendo este enunciado muito bem, é um enunciado simples de compreender, mas para ser muito honesta não é sempre que consigo vivê-lo em sua plenitude. Não tenho confiança suficiente para tomar refúgio no meu próprio coração.
Até que consiga habitá-lo em tempo integral, tomo refúgio nas fotos, uma expressão visível que me aponta aquilo que é impossível tocar.
Toda vez que tomo refúgio desta forma, uma aura luminosa e invisível surge ao me redor. Sinto-me bem, sinto-me capaz de seguir adiante. Não estou sozinha, sou como a Bethânia, não mexe comigo que eu não ando só.
Primavera de 2023. Era março, eu caminhava do atelier para casa num final de manhã. Era um desses dias de muita derrota e poucas esperanças poéticas em que eu andava muito, muito cansada de tudo, de construir a casa, da dor no braço que em vez de melhorar subia para o ombro. Naquele dia uma ideia surgiu
você podia fazer o caminho de Santiago
, e era uma ideia que veio calma e bonita, sem forçar resposta
você podia fazer o caminho de Santiago.
Não era bem nova, a ideia já tinha me surgido há uns dez anos para depois sucumbir, adormecida. Era março, a ideia reemergiu e eu respondi, olha, que boa ideia.
Dois meses depois eu estava fazendo as malas e começando a caminhar.
O invisível conversa com a gente.
Sinto que tenho sorte por ter encontrado uma porção de pessoas, algumas vivas e outras não, que encarnam o invisível.
Uma vez, por exemplo, encontrei uma mulher clarividente que diz que consegue ver por dentro dos seres humanos. No começo fiquei desconfiada, mas depois de encontrá-la algumas vezes tive certeza de que ela podia ver dentro de mim e resolver uns nós que eu não conseguia desatar.
Conheci também uma outra que conversa telepaticamente com animais. Duvidei, obviamente, mas só até ela descrever com precisão os sentimentos do meu gato cinza.
Acredito muito no poder do invisível.
Acredito, por exemplo, que Arunachala, no sul da Índia, não é uma montanha. Acredito que ela é mesmo
Shiva. Acredito que se você ficar muito quieta, muito quieta mesmo, poderá ouvir a pulsação do cosmos por dentro dos átomos, e acredito em
telepatia
E.T.s
fantasmas
experiências de quase morte.
Escrevo esta Newsletter enquanto uma amiga está na fronteira do invisível. Ela tem 38 anos, se não me engano, e foi parar lá há quatro dias depois de passar alguns anos em tratamento de câncer. Na cama do hospital, já não sente dor, tem uma expressão muito calma no rosto e a pele transparente, uma pele de quem já não está mais bem aqui.
Numa destas manhãs, trouxe minha amiga ao pensamento e fiz uma prece por ela. Fiquei quieta por uns vinte minutos. Quando abri os olhos e levantei, tive a impressão de que ela tinha feito mais por mim do que eu por ela.
Depois de observar a minha amiga assim, tão plácida, perdi um pouco o medo da morte.
Não sei se o corpo dela vai estar conosco no momento em que esta Newsletter estiver sendo enviada. Pode ser que tenha passado para o outro lado, para dentro das fibras do tempo-espaço. Vai virar mais uma foto no altar, a lembrança dos nossos dias aqui, 2015, depois 2018, ficamos mais próximas em 2020, sou um pedaço dela e ela de mim, a onipresença do invisível na primavera que se aproxima.
Esta edição do Sofá é dedicada a ela.
Notinhas
Para ler: este texto da Dia Nobre
Entramos 2024 numa vibe antiprodutivista. No mês de fevereiro, todas as edições do Sofá da Surina rolaram em torno no tema Nada. Na primeira semana falei sobre Espaço para não esquecer do campo aberto e livre que existe por trás de todo entulho material e psíquico que tenho o hábito de acumular. Na seguinte, o assunto foi Viver sem centro e nesta última do mês, A onipresença do invisível.
Aliás, o que vocês estão achando das minhas tentativas de editoria? Deixe o seu comentário; estou morrendo de curiosidade.
Todas a edições deste mês saíram atrasadas (!), mas espero me redimir em março e voltar a enviá-las para vocês todo sábado de manhã. A propósito: o Sofá da Surina sempre tem um descanso no último fim de semana de cada mês, o que quer dizer que nos vemos de novo no dia 2 de março.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Surina, que texto 🧡 me pegou desavisada... invisível anda conosco.
Que a sua amiga esteja confortável, acolhida e sinta paz! 🙏🏻
o invisível está bem diante dos nossos olhos, mas não se deixa ver. é preciso muita sensibilidade para sentir.