Tenho um desejo secreto: quero ser monja.
Até agora, o máximo que consegui para realizá-lo foi viver num ashram e escrever um livro.
Não sei se um dia realizarei o meu desejo, mas o meu desejo, realizado ou não, é uma bússola. Enquanto não viro monja, invento minha própria versão de vida monástica do jeito que dá.
Começo esta edição da Newsletter com a noite de réveillon 2022-2023. Foi uma noite estranha. A festa na casa do amigo do amigo era para ser uma celebração em família de novos começos depois de anos de pandemia. Levei uma salada semi-pronta num pirex de vidro. Na porta de entrada, recebi as boa-vindas em inglês de um desconhecido cheio de glitter na cara:
Boa noite, querida. Aqui está o bracelete neon. Ali na mesa tem uma caixinha de doações. Hoje à noite estamos servindo MDMA e LSD.
Chegaram pessoas de todos os tipos. Um homem de quimono preto com uma coroa de couro na cabeça. Uma mulher de 60 anos com um acento britânico de realeza. Uma loira com dreadlocks. Uma DJ de música eletrônica. E muitos, muitos cachorros.
Enquanto terminava de preparar minha salada de cuscus na bancada da cozinha, ouvi um vestígio de conversa:
Você não acredita quem veio me visitar ontem... Um grupo de serafins!
Rolei meus olhos por dentro das órbitas e fechei os ouvidos. Devia ser proibido contar experiências místicas. Afinei meu cone de atenção e fui cortando o salsão bem picadinho; torrei as sementes, esmaguei as castanhas de caju. Fiquei tão entretida que não me dei conta que a cozinha tinha esvaziado.
No lugar do burburinho, um silêncio. Do salão ao lado veio o cheiro de sálvia, que conheço dos templos indianos. A luz estava apagada, de repente um coro:
Ooooooooooommmmmmmm
Espiei através da cortina. A constelação de pessoas sentava em círculo enquanto um homem pequeno sem camisa passava de um a um pingando ácido num conta-gotas. Os convidados tinham a boca aberta, devotos de uma benção new age.
Rolei os olhos por dentro das órbitas mais uma vez e fechei a cortina. Despejei a cenoura ralada da tábua para o pirex e só consegui sentir isso:
O que estou fazendo aqui?
Na noite de réveillon, as cinquenta pessoas chegaram na cozinha com uma membrana de civilidade. Olha como sou interessante. Quando o ácido bateu, tudo mudou. Elas agora dançavam feito um cardume – ninguém se trombava, cada uma tinha seu lugar natural, invisivelmente compreendido pelas outras através de uma língua telepática. Lembrei do livro da Ana Rusche, A Telepatia são os outros, e me vi em meio a um experimento fantástico. Pedaços de barbante se espalhavam no chão, as pessoas na pista se enrolavam umas nas outras.
Naquele momento, e com a cabeça cheia de MDMA ou de ácido, aquela constelação de seres estava, para dizer muito simplesmente: feliz. Não havia presente nem havia futuro. Não havia medo nem ressentimento.
Sentada num sofá, eu observava. Uma pedra de quietude me prendia. Eu não tinha nada para dizer nem vontade de dançar. Nem vontade de fazer nada, inescapavelmente atada à minha sobriedade.
Ali, naquela festa maluca, o ensinamento mais elementar do Buda me veio: tudo é sofrimento, e o que todo mundo quer é ser feliz. Não importa a direção. As pessoas da festa tinham encontrado uma forma de conexão, um lugar onde não havia separação entre si mesmas e o mundo.
Culpa da química ou não, esta não é uma discussão sobre permanência ou validade das experiências. Uma coisa me pareceu certa, entretanto
: todo mundo naquela festa estava feliz.
Volto ao meu desejo de ser monja.
Há seis meses acordei cedo e virei pro meu marido:
- Sonhei que finalmente tinha me ordenado.
Fiquei muito triste ao voltar à realidade, mas depois de uns dias passou. Não foi sempre assim. Nos meus piores momentos, atravessei meses literalmente dormindo para escapar desta sentença chamada vida. Felizmente, a realidade tornou-se um lugar habitável desde a metade dos meus 30, época em que finalmente entendi que pertenço à solidão e que não tem problema ser assim.
Mesmo casada e em contato com o zig-zag da vida, sei que a solidão está sempre me esperando e que nunca recusa minha visita. É para ela que volto quando preciso saber quem sou.
Quando era pequena, ninguém me contou que dava para viver sem querer o que as outras pessoas pareciam desejar. Ninguém dizia que querer ficar só era normal. Passei três décadas recebendo regularmente minha ração de sofrimento porque não queria filhos, trabalho estável nem casa. No espelho, via uma menina mimada que tinha tudo e estava sempre insatisfeita. Só que por mais que tentasse, não conseguia gostar daquilo que diziam que eu devia gostar.
Até os 34, não sabia o nome do meu desejo. Nunca tinha conhecido ninguém com a mesma vontade nem encontrado outras monjas, por isso achava que o problema era comigo.
Se tivesse entendido antes, talvez eu pudesse ter me ordenado jovem e o Sofá da Surina hoje teria o título No Sofá com a Monja. Talvez eu pudesse ter aprendido mais. Não sei. Mas gosto que tenha sido como foi e que eu tenha descoberto do meu jeito este desejo que me habita.
Em troca da confusão e do tempo perdido, este caminho cheio de erros me deu um refúgio: comecei a me reconhecer em muitas pessoas. Por exemplo: quando li o maravilhoso Parque das Irmãs Magníficas, da escritora travesti Camila Sosa Villada, meu primeiro pensamento foi sei um pouco como você sente; eu também me sinto assim. Com o tempo, descobri que meu desejo não era uma aberração, e que um monte de gente que admiro passou um tempo em monastério ou tem uma prática espiritual. Leonard Cohen, Gary Snyder, George Harrison, Lou Reed, Laurie Anderson, a querida Natalie Goldberg.
Somos muitos.
Continuo achando que não pertenço a lugar nenhum, mas agora já não me sinto tão sozinha.
Recomendações
Musa absoluta: Tenzin Palmo, a monja que passou doze anos meditando em retiro numa caverna nos Himalaias e hoje continua trabalhando pelotreinamento das mulheres que desejam dedicar a vida ao dharma. A edição original Cave in the Snow saiu no Brasil com o título Caverna na Neve pela Lúcida Letra.
O documentário contando a história da Tenzin Palmo está aqui (legendas em português).
Se você sente desejo de conhecer uma iniciativa linda e séria de treinamento de monjas, recomendo que você visite o site do Dongyu Gatsal Ling - o monastério feminino dirigido pela Tenzin. E se quiser utilizar seu dinheiro para apoiar a continuação do dharma neste nosso samsara, é uma ótima escolha.
Notinhas
108 é o título do meu próximo livro, um romance de cores autobiográficas que conta uma história de busca espiritual baseada na minha própria trajetória - não sei se todo mundo aqui sabe, mas parti do Brasil para viver um par de anos num ashram e nunca mais voltei. 108 é o número de contas de um rosário de preces budista; o livro tem 108 capítulos curtos - cada um é uma pequena conta dentro da grande aspiração de dar o passinho de vez para fora do samsara.
O Sofá da Surina é uma Newsletter que chega até você aos sábados de manhã, exceto no último fim de semana do mês. Sábado que vem é o último de abril, dia de descanso do Sofá. Isto quer dizer que nos vemos de novo no dia 6 de maio.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
A citação ao Telepatia!, rs. Amo ficar sozinha, é estranho esse desejo mesmo. Mas citando a Meireles,”Não sou alegre nem sou triste: sou poeta” 😽
Acho meio doido como consigo me identificar tanto com algumas coisas que escreve. Sempre tive a solidão como companhia e muita dificuldade de admitir isso ante todo tipo de pressão social. Curioso aqui com o que dirão essas 108 contas!