A varanda está em silêncio. São dez da noite e daqui do lado de fora da porta tudo é escuro na nossa falta de vizinhos, das luzes dos vizinhos e dos carros e das pessoas que não passam na rua que não há.
Só uma estrada de terra vazia. Fixei residência no meio do nada.
Na minha casa, tudo é falta sob o céu estrelado do Alentejo que – um morador local me contou – é um dos melhores lugares do mundo para enxergar o firmamento. Escuto poucos sons, todos exponencialmente altos no silêncio do mato
: um par de gatos correndo entre os arbustos do quintal
uma coruja
meu marido assistindo uma série de televisão no quarto. Já faz tempo que o Lee vem se recuperando de uma gripe e passa a maior parte do tempo deitado, assistindo porcarias variadas. Antes de sentar na varanda, levei-lhe uma xícara de chá de melissa com camomila. Ele respondeu com um beijo descomprometido para não perder a próxima cena do filme e deixou o chá esfriando na mesa de cabeceira.
Não chove há meses e dez dias atrás começou uma onda de calor barra pesada deixando esta região do mundo tão seca que olhar pela janela é assistir em tempo real a profecia do apocalipse climático. Achei por bem desafiar o inevitável, por isso plantei um jardim lindo com arbustos de alecrim e capim-limão esperando a chuva prevista para a semana que vem.
A chuva aqui é mais bonita porque acontece só de vez em quando, mas semana que vem não estarei aqui para ver água caindo do céu.
Em três dias, se tudo der certo, estarei desembarcando na Índia. Tomarei três voos e um taxi para Bodhgaya, onde sou convidada de uma exposição de arte budista organizada pela organização Sidharta’s Intent.
Minhas pinturas ficarão expostas junto das de outros quinze artistas num lugar ao lado da Bodhi Tree, a árvore sob a qual o Buda Shakyamuni se iluminou.
Há mais ou menos 2500 anos o Buda entendeu profundamente a natureza da existência sob uma árvore que hoje fica no estado de Bihar, o mais pobre da Índia.
Nunca imaginei que as minhas pinturas um dia chegariam a outro país, muito menos a um lugar tão especial - provavelmente o canto mais especial deste planeta para o qual uma pintura do Buda vai querer viajar. Isto me faz pensar que, quando iniciamos algo, nossa mente não é nem remotamente capaz de avaliar o lugar ao qual aquilo vai nos levar.
Comecei a desenhar aos 34. Comecei a escrever histórias aos sete. Aplico-me aos dois com uma devoção quase religiosa desde que comecei: escrevo e/ou desenho quase todos os dias. Acontece que, embora sinta-me muito mais escritora do que ilustradora, é na segunda qualidade que estou indo pra tão longe com meu trabalho.
O destino é mesmo um mistério.
Mas nada disso me passa pela cabeça enquanto estou sentada na varanda hoje à noite.
Hoje à noite, na varanda
a gata branca e preta de cinco meses pula no meu colo
o gato tigrado da mesma idade que enxerga mal tenta sem sucesso caçar uma mariposa
a música tensa da série ruim que o Lee assiste assusta os dois, eles se escondem por trás da cadeira, tudo que me passa pela cabeça
isso sim
é a vontade de
ficar.
É estranho sentir vontade de ficar em casa para alguém cuja única vontade, desde que me reconheço como gente, é sair por aí.
Sair caminhado, esta seria minha vida. Entendi que seria assim por volta dos 13 anos. Desde o princípio me falta a vontade de filhos ou família, uma falta devidamente ocupada pelo desejo de conhecer lugares desconhecidos e de preferência sozinha. Aos 43, ainda continuo achando que esta é a maneira mais bonita de
viajar. O tempo e a convivência com o Lee talvez me façam reformular este enunciado, mas por ora minhas aventuras preferidas são sempre solitárias.
Tenho orgulho dos países que conheci, e mais ainda dos países nos quais vivi. Meus pais nunca tiveram grana para bancar as aventuras, por isso me virei com bolsas de estudo ou trabalho. Aos 22, Nova York, depois Genebra, Paris, Andaluzia e agora
Portugal. Há, também, os lugares por onde passei, sempre por tempo suficiente para que pudessem entrar em
mim. Islândia, Finlândia, Bósnia, Alemanha, Bélgica, Argentina, Chile, Peru, muitos outros que não lembro mais.
E a Índia. Esta será a quinta vez no meu país preferido. É pra lá que sempre quero voltar, e fazia tempo que eu queria este retorno, mas agora, estranhamente, sinto que me faltam as paisagens do futuro. Limito-me ao presente, e ele diz
: aqui.
Mas as paisagens futuras virão, é claro. Elas estarão diante de mim quando eu ouvir de novo os barulhos das motocas e das buzinas e dos vendedores
quando sentir o cheiro da comida
e puder enxergar as pessoas vestindo roupas coloridas que preenchem as ruas sem vergonha de serem isso
: coloridas.
Quando chegar na Índia, será que vou sentir aquela mesma vontade antiga de não voltar pra casa nunca mais?
Uma vez ouvi que há dois tipos de escritores: aqueles que se lançam ao mundo contando histórias das descobertas e os que permanecem no mesmo lugar para falar sobre o universo a partir das experiências que lhes são familiares.
Desde o princípio, tive certeza que fazia parte do primeiro grupo. Não só como escritora, aliás. Como leitora, também, prefiro as narrativas de viagem, as histórias dos Frodos e dos planetas distantes feito Arrakis, relatadas pelo Frank Herbert em Dune. Ou as pirações do Murakami.
Por isso, então, querer ficar é também uma crise de identidade literária.
Aí eu lembro que nos últimos anos minhas leituras têm mudando. Venho lendo a poesia da Mary Oliver, com suas descobertas gigantescas enquanto caminha pelas paisagens perto de casa. Também fiquei muito comovida quando li Nobody Home, uma troca de correspondências ao longo de três décadas entre o poeta beat Gary Snyder e a escritora & acadêmica sul africana Julia Martin. Os dois falam sobre budismo, vida acadêmica, prática de escrita e cotidiano. Daquele micro-universo, conseguimos tocar as transformações sociais na África do Sul pós-apartheid e as possibilidades econômicas de viver de escrita nos Estados Unidos.
Dou-me conta que é isto que venho fazendo ao longo destes quase três anos de Sofá da Surina. Falo das minhas impressões a partir de São Martinho das Amoreiras. E agora estou com essa preguiça de sair daqui pra viajar.
Sinto pavor. Em que tipo de escritora a vida está me tornando?
Talvez eu não faça parte de nenhum dos dois grupos. O mais provável, contudo, é que eu faça parte de ambos.
Na última edição da sua newsletter Tristezas de Estimação, a Fabiane Guimarães nos convida a pensar sobre nossa obra de escrita. Qual tipo de linguagem utilizamos? Nossa comunicação é mais direta ou estamos mais à vontade no lirismo? Qual o nosso gênero literário? Somos habitantes do realismo, da fantasia ou de um mix? Temos um escopo geográfico similar nas narrativas que escrevemos?
Ainda estou pensando no convite da Fabiane. Quando tiver mais respostas, quero escrever uma edição do Sofá falando do que descobri sobre a minha escrita a partir das perguntas dela.
Por enquanto, concluo sou feita de duas vozes falando no mesmo corpo. Neste momento preciso, tento dar sentido ao mundo desde as minhas experiências íntimas na varanda de casa em São Martinho das Amoreiras.
A partir da semana que vem (se tudo der certo), sentarei na varanda do mundo para tentar dar sentido às minhas experiências íntimas em movimento. No próximo mês espero publicar os Diários de Bodhgaya aqui no Sofá.
Espero que vocês venham comigo. E: que sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Hoje tive uma conversa com um amigo sobre a vontade que hoje tenho de ficar em casa. Eu, que também sempre tive rodinhas nos pés, sinto que gastei todas elas e agora fico com uma preguiçona de me locomover pra longe. Mas quando viajo, todo esse amor pela estrada volta mesmo que temporário. Boa viagem e curiosa pra ler esse diário. ❤️
Eu ia escrever um comentário, mas a repartição aqui do Substáquio é pequena, então mandei um e-mail!