Dizem que no solstício de inverno o universo joga solvente nas fibras do mundo e afina o portal que separa os vivos dos mortos. Neste dia os que foram e os que vivem ficam mais perto.
É fim do outono aqui. O frio chega, as folhas começam a cair, a vida que vem do sol diminui e quanto mais o inverno chega, mais as criaturas secam. Os mortos me visitam, ou talvez não seja isso. Talvez seja eu atravessando pela porta.
2021 foi o ano que não terminou, 2021 foi o ano que não começou. Nesta última volta dadaísta que a Terra deu em torno do sol a morte e a vida estiveram de braços dados. Morreram pessoas queridas e morreu também uma certa forma de ver o mundo. Numa aula de escrita pelo Zoom, alguém disse: é como se estivéssemos mortos há dois anos sem notar e nos encontrássemos aqui uma vez por semana, feito fantasmas.
Carreguei a frase pelo dia, à noite parei para olhar com mais cuidado. A verdade, mesmo, é que elas sempre estiveram juntas. A morte existe não como o oposto da vida, e sim como parte dela, diz o protagonista de Norwegian Wood, escrito por Haruki Murakami. (...) Uma noite perdi a habilidade de ver a morte (e a vida) em termos simplistas. A morte não era o oposto da vida. Ela já estava aqui, dentro do meu ser - ela sempre esteve.
Gosto do que diz o personagem do Murakami porque esvazia o par morte-vida da oposição. Elas agora são irmãs siamesas. Nossa primeira respiração é também nosso primeiro passo em direção ao fim deste corpo mortal, e é por isso que quando penso na morte imediatamente recebo de presente uma perspectiva renovada sobre a vida. O que importa de verdade? Se meu tempo acabasse agora, como eu me sentiria?
Neste dia de solstício e de última Newsletter do ano, o tempo me encontra assim. Funerária. Poderia estar mais solar, só que é inverno. Sob a noite mais longa do ano, abraço o ensinamento budista de Dzonghsar Khyentse Rinpoche : a vida é embriagante e, para a maioria de nós, pensar sobre a morte é o único método para mantermos a sobriedade.
Gosto muito desta flor chamada Vida. Neste final de ciclo, estendo a vocês a aspiração que fiz para o ano que entra: que possamos ter coragem de olhar para esta outra, de cor púrpura.
E que no ano que vem não precisemos esperar o solstício. Seremos os nossos próprios portais.
Esta senhora chamada Morte
- Viver é morrer: como se preparar para o morrer, a morte e além é um livro de 2020 escrito pelo professor tibetano Dzongsar Khyentse Rimpoche. O texto é tão bem escrito que não dá vontade de parar de ler e apesar de ser sobretudo uma leitura budista, a verdade é que ele pode ser lido sem grandes problemas por não-budistas também. Finalmente vale dizer que num gesto lindo de generosidade do autor e da comunidade budista que o traduziu, o livro está disponível para download gratuito em várias (original em inglês).
- Fizeram uma animação do livro ilustrado mais bonito que existe, ilustrado e escrito em alemão pelo Wolf Erlbruch. Aqui você assiste O pato, a morte e a tulipa (10 minutos, legendas em português).
"Além do branco brilhante da neve recém-caída, o inverno aqui oferece uma única outra cor: o cinza melancólico. Os campos verdes desapareceram, as árvores estão nuas. É como se roubassem da terra a sua vitalidade.
Um dia de fim de outono, quando todas as folhas tinham caído e o frio do inverno ainda não tinha chegado, olhei para uma fila de árvores nuas e uma ternura tomou meu coração. Compreendi profundamente que, como os animais, as årvores são seres sencientes que precisam se preparar para o futuro (...). O inverno gélido vem imperdoável para tudo que é jovem, tenro, inseguro. É preciso crescer para lá das incertezas da juventude se o que se deseja é sobreviver."
(Do diário de Thich Nhat Hahn, 21 de dezembro de 1962)
Ah! E que todos vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,