Três vezes por semana um conjunto pretinho básico me espera num armário de madeira a dois quilômetros de casa. Por trás da porta indicada com Surina em fita crepe, repousam placidamente uma camiseta tamanho M com dizeres em vermelho e amarelo, uma saia-avental que vai até o meio do tornozelo e um elástico para prender os cabelos, que é para evitar que os fios se esparramem da cabeça por lugares indesejados como a superfície de um bife ensanguentado, por exemplo.
São onze e meia da manhã quando chego, o prédio está fechado e ainda vazio. Mas não por muito tempo. Aperto o código sigiloso e entro pelo portão de trás vestindo minha sandália cor de rosa plataforma, um casaco peludo de zebra e uma bolsa de mão marrom. Atravesso o salão deserto em direção à porta no fim do corredor onde uma placa cinza está pendurada
Privado
e troco de roupa fazendo questão de deixar na boca o batom vermelho. Por trás do uniforme, a boca pintada é a única parte de mim onde ainda sobra algum traço de escolha.
De lá de dentro do quarto privado, emerjo novamente para o lado de fora como um ser transformado. Camiseta, avental, cabelo preso, boca colorida. Agora há pessoas à minha espera. Caminho na direção do primeiro grupo, três senhoras com roupas escuras de inverno, e anuncio diante delas a minha nova identidade:
Olá, hoje sou a sua garçonete. Vocês estão prontas para pedir a bebida?
Tenho outra identidade secreta. É uma que ninguém conhece, só os meus gatos. Todas as manhãs, assim que o dia nasce, saímos de casa juntos, cruzamos a porta e descemos para a cabana do jardim.
No hut de madeira de dez metros quadrados, faço fogo na lareira enquanto eles se ajeitam no sofá. Acendo uma vela e um incenso, eles fecham os olhos. Enquanto dormem, agarro um livro.
Leio duas palavras, deixo de lado.
As janelas têm cortina, ninguém nos vê. As paredes estão em silêncio, sinto um nervoso no peito. Acho que vou explodir. Certamente vou explodir. Penso em todas as coisas que tenho que fazer, no texto da newsletter pra terminar, nas obras que preciso enviar pelo correio para os clientes esta semana sem falta, na nova ração que tenho que pesquisar porque os gatos andam com caganeira.
As coisas da vida querem me tirar daqui, e é só por disciplina e um pouco de esperança que continuo sentada, desafiando todas as possibilidades até notar que as vozes estão falando mais baixo. Elas passam para o pano de fundo. Elas pelo menos deixam de gritar.
Às vezes uma sensação boa aparece, uma leveza no corpo, e então lembro do ensinamento
sensação boa ou ruim, tanto faz. Enquanto estiver aqui, deixe tudo aparecer. Essas sensações passam, você
continua.
Na mesa de dois lugares perto da estátua enorme do Buda, um amigo alemão da minha idade, meio careca-meio cabeludo, fica muito bravo quando tento tirar a caneca vazia de cappuccino que ele já terminou mas ainda não sabe
você não consegue ver que eu ainda estou bebendo?
O homem segura com toda força a alça da xícara transparente que tem uma espuminha minúscula no fundo (acho que não dá nem para um gole), depois diz que quer pedir o almoço
sinto muito, a cozinha do nosso restaurante fechou às três
(respondo)
, a espuminha no fundo, cada vez menor,
então por que você demorou tanto pra vir me atender?
Não dá pra saber. Às vezes, as pessoas querem que a xícara vazia desapareça para dar mais espaço pro laptop em cima da mesa e ficam brava se você demora um minuto pra tirar a louça suja. Às vezes um homem quer descontar a raiva em alguém e esquece que sou amiga porque é mais fácil odiar a
garçonete. O dia dele provavelmente está uma merda, a vida dele provavelmente está uma merda, não tem como saber. Nunca tem como saber tudo, de verdade, portanto a única coisa a ser feita é
tirar a caneca
passar pelas mesas
sensação boa, sensação ruim
a única parte que resta sou eu.
Recebo mensagens de uma leitora que já encontrei muitas vezes por email ou por mensagem. Nos encontramos tantas vezes que já nem sei o que é o Sofá sem ela, somos parte do mesmo bote - ela lendo, eu escrevendo. Será que ela gostaria de me encontrar para um chá? Será que a gente teria assunto fora do par escritora-leitora? Fora da escrita, o que eu teria para dizer a ela?
Meu marido pensa que me conhece
meu marido me conhece muito mais do que eu me conheço
meu marido me conhece muito menos do que ele acha que conhece
meu marido me conhece muito mais do que ele acha que conhece
meu marido me vê todos os dias ao acordar.
Meu marido escuta o que digo enquanto estou dormindo
coisas que nem eu sei que disse
coisas que ele entende, quando falo em inglês
coisas que ele não entende, quando falo em português
e estas coisas que ele não entende, que não escuto (porque estou dormindo), mas que falo mesmo assim
: estas coisas vivem num lugar secreto, inconsciente mesmo pra mim. Um lugar que não se revela, mas que também sou eu.
Estes dias acordei de novo de um sonho no qual estava sendo ordenada monja. Eu era bem mais gorda do que sou. Meu corpo era perfeito, lindo e verdadeiro. Eu era calma e tinha a cabeça raspada.
Eu sabia que estava no lugar certo. Minhas companheiras eram monjas, a gente vivia numa floresta, provavelmente um monastério remoto em algum lugar na Índia.
Acordei e meu marido estava ao meu lado na cama, deitado sem camisa, meio dormindo, meio acordado. Eu também: meio dormindo, meio acordada
meio eu, meio a monja, um prolongamento entre mundos. Acordei, fiz café com leite, cozinhei um ovo e passei o dia triste, querendo ser monja enquanto observava a vida do lar se impor.
À noite, eu e meu marido colocamos música eletrônica para ouvir nas caixas de som tecnológicas que ele instalou. Era um set lindo do Four Tet, o som era perfeito dançamos sozinhos na sala de estar, os gatos no sofá achando esquisito o baixo do subwoofer, e eu pensei
a vida é bonita, a vida é muito bonita no samsara.
A mulher que eu sou bebia um vinho. A monja que eu sou dentro de mim descansava.
Tenho a identidade de construtora de mesas curvilíneas de madeira
de uma advogada de repartição
de uma acadêmica interrompida
de uma ciclista que deu um tempo da bike
tenho a identidade de uma corredora frustrada
e de uma ginasta que nunca existiu
sou a filha da minha mãe
a irmã do meu irmão
e tenho certeza que meus gatos acham que sou um gato como eles, sem pelos e com uma espinha mais dura.
Você sofre disto? Eu sofro. Eu sofro porque quero ser uma coisa só, consistente e redonda. Quero poder dar ordem ao mundo, começando por mim.
Ultimamente me entrenguei à obviedade de que este desejo me escapa. Não por vontade, claro: se fosse por mim, acredite, eu seria uma pessoa só. Uma mulher coerente em todos os sentidos, sem arestas nem pontos invisíveis.
Uma mulher perfeita, calma nas horas certas, mas com uma atitude guerreira diante da vida. Uma mulher sem medo, exatamente como a minha gata.
Eu seria uma esposa amável porém feminista que sempre diria a coisa certa na mesa de café da manhã. Imagina? Ainda bem que a minha projeção mental não se realiza, porque ela iria produzir uma verdadeira
caga-regra. De qualquer forma a vida, esta coisa louca, a vida se recusa a me obedecer. As coisas na minha cabeça continuam rodando enquanto eu medito
e os gatos acordam na segunda hora de prática e mordem meu pé contemplativo e o planeta
o planeta continua rodando. O planeta não é parado, até o planeta se move. Daqui de onde vejo, ele é verde no inverno e amarelo no verão.
De longe, é azul.
E bem, bem de muito longe
vira um ponto
que vai ficando menor
nem o planeta Terra é uma coisa
só.
Notinhas
Um momento de pausa para que eu possa recomendar este texto lindo da Paula Maria:
Esta é a oficialmente a última edição 2023 do Sofá da Surina. Nem nos meus sonhos mais distantes eu imaginaria um ano de tanta escrita e de tantos encontros com leitores. Muito obrigada por ler o Sofá, por mandarem mensagens e sugestões, por dividirem os sábados de manhã comigo.
Nesta temporada de final de ano, quero pensar um pouco melhor na temporada 2024 do Sofá. Na última edicão perguntei sugestões de temas (todos anotados!), e continuo a pergunta aqui.
Que todos nós tenhamos um final de ano bem luminoso e lindo junto das pessoas, dos bichos e das plantas que amamos.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. A gente se encontra de novo no dia 5 de janeiro,
Fez todo sentido pra mim.A primeira leitura de uma manhã chuvosa,em que não posso ficar em casa pq vou assumir um outro eu necessário pra continuar vivendo.
Obrigada por esse ano repleto de textos lindos !Até ano que vem ☺️
Muita alegria ter encontrado a sua newsletter. Feliz passagem de ano!