Sofá da Surina

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#21. Balanço de fim de ano

sofadasurina.substack.com

#21. Balanço de fim de ano

Começar 2023 que nem a Alice entrando na toca do coelho

Surina Mariana
Dec 31, 2022
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#21. Balanço de fim de ano

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O ano que nunca começou.

Coloco o computador numa mesa de carvalho com vista para um vale selvagem da Serra da Estrela, um dos lugares mais bonitos de Portugal. Costumo vir para cá todo ano, numa peregrinação meio road trip de dois dias dirigindo a motor home do meu companheiro.

Nosso ritual se repete há três anos. Partimos do desértico sul alentejano, repleto de cactos e rocha, em direção ao exuberante norte português, onde os pinheiros e as coníferas fazem parecer que estamos numa floresta escandinava. Na noite do primeiro dia, dormimos em algum canto escondido a meio do caminho. Ao chegar, quarenta horas depois de partir, estacionamos a van na parte mais alta do terreno.

O sinal fraco aqui no alto da Serra da Estrela nos força à desconexão: precisamos andar de um lado para o outro com o celular em busca de vestígios de internet. Lembro do início d’A Montanha Mágica. O protagonista Hans Castorp embarca num trem que vai subindo, subindo, subindo com destino a um sanatório de tratamento para tuberculose nos alpes suíços. Quanto mais Cartorp se aproxima do topo, mais a sua vida na planície submerge, dissolvida no ar rarefeito do novo mundo que começa a habitar.

Imersos na vida corpórea não-digital da Serra da Estrela, meu companheiro e eu passamos uma semana lendo e conversando. Acordo cedo para fazer nosso café no fogão de duas bocas da van. Com as canecas fumegantes na mão, colocamos nossas cadeiras de piquenique na porta e fazemos o exercício de procurar o sol escondido por trás das nuvens do vale. Quando as canecas esvaziam, saímos de bota impermeável + mil cachecóis caminhado pela floresta de pinheiros.

Este lugar é um refúgio no meio do mato, onde um casal de amigos construiu uma casa-centro de retiros um pouco antes da pandemia. Eles não esperavam ter que passar dois anos sem poder abrir. Durante o lockdown de 2020, foi nosso esconderijo e centro de reconexão: estrangeiros e sem poder visitar nossos países de origem, tivemos aqui o natal mais lindo reencontrando nos nossos laços de amizade - ainda incipientes - um ensaio de família.

O vento está impossível aqui onde estacionamos a van, por isso desci até a cozinha comunitária, vazia, com vontade de escrever um balanço de fim de ano para a última edição de 2022 do Sofá da Surina.

Espremo os olhos para enxergar o ano passado. Tento, mas não consigo reconhecer as formas com nitidez. Hoje é o dia 31 de dezembro e minha memória deste ano que fecha é míope; 2022 é uma criatura disforme envolta numa neblina grossa que desafia minhas tentativas de definição, balanço ou conclusões. Hans Castorp, acho que consigo entender o que você sentiu.

Talvez eu precise do benefício do tempo para enxergar melhor. Talvez daqui a três ou quatro anos eu possa ter outra perspectiva deste ano maluco e dizer, simplesmente: foi assim.

Por ora, o que vejo é pouco compreensível. A pandemia acabou, mas não muito. A vida voltou ao normal, mas não muito. Construí uma casa para morar, mas quero sair viajando. Saímos do pesadelo fascista, mas o novo presidente só toma posse amanhã.

Confesso que meu embaçamento não começou hoje. Faz semanas que sento na escrivaninha para escrever uma retrospectiva, mas o máximo que consigo é apertar os olhos mais um pouco. Desistir é um gesto de sabedoria, penso nisso agora, achando que é impossível fazer um balanço do ano passado do jeito que eu tinha planejado.

Se é para escolher uma palavra, 2022 foi o ano da Esperança, começando pelas eleições. Só que esperança de 2022 é uma experiência firmada no presente, não no futuro: 2022 me deu o ensinamento de viver neste espaço minúsculo da chama da vela. Não dá para ver nada, e vai saber que monstros terríveis se escondem embaixo da cama. Eu me equilibro no café com leite, neste refúgio que nossos amigos generosamente nos oferecem todo ano, na sabedoria do meu gato, nas ligações para os amigos do Brasil, na escrita de todos os dias.

A chama é um lugar pequeno, mas é um lugar de lucidez e cheio de imagens bonitas que me dão força.

O ensinamento que recebi de 2022 é o de que habitar a possibilidade da beleza já é encontrar a beleza de algum jeito.

“Writing comes from strange places” (2019, aquarela, nanquim, carimbo)

Um trecho lindo de A field guide to getting lost, da Rebecca Solnit:

“Deixe a porta aberta para o desconhecido, para a escuridão. É de onde vêm as coisas mais importantes, o lugar de onde você vem e para onde irá. A arte, aqui, não é a de esquecer, mas a de deixar. E quando todo o resto tiver ido, sua riqueza será a perda”.

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Uma recomendação de leitura

Memórias de uma vida interrompida, Suleika Jaouad. Descobri o livro porque ela escreve uma newsletter aqui no Substack - the Isolation Journals. O livro é uma autobiografia na qual ela fala do diagnóstico de leucemia aos 22 anos, e a parte mais incrível é o modo como conta a história evitado o caminho convencional de resolução do conflito na cura. Trazendo à frente uma citação da Susan Sontag, o argumento do livro gira em torno da premissa de que todos somos cidadãos de dois reinos - o dos saudáveis e o dos doentes -, e que de uma forma ou de outra teremos que encontrar estes dois países ao longo da vida. Melhor livro para explorar a incerteza desta passagem de ano de uma forma inteligente e luminosa.

Resoluções de ano novo

Você está lavando uma louça interminável e de repente sente uma coisa viva se mexendo na barriga. Ou será que é no tórax? Pensando melhor, deve ser no diafragma - entre os dois. A coisa não se mexe nem fala, mas estica as patas da frente e se enrola quente entre as dobras das mucosas estomacais. É um bicho que você nunca viu mas conhece há muito tempo, mole e macio. Misterioso e quieto, ele espera.

Você deixa a bucha em cima da pia, estende a toalha de prato perto do fogão e descobre.

A coisa viva é você.


O sol que entra pela janela no sábado à tarde é perfeito para as plantas de meia-sombra. Agora esta espada-de-São-Jorge vai pra frente, você conclui enquanto dobra as roupas que tirou do varal. O par de meias azuis, um sutiã poído. Na camisa azul você para. Algo está diferente. Você olha para a gaveta e ouve uma voz saindo de baixo da camiseta branca

: é hora de agarrar a vida com as próprias mãos.  


São nove da noite. Deito no sofá abraçando o café com leite para assistir a terceira temporada de uma série mais ou menos. A primeira hora termina, os créditos estão rolando na tela. Em vez de seguir o de sempre, desta vez não aperto "próximo episódio" nem "pular abertura". A sala está vazia, um carro passa na estrada de cima - a porta abre, fecha, um barulho de chave e depois... nada.

Um carro perto do cemitério ecoa uma música alta. Noto de repente que por entre os buracos do meu nariz está passando algo chamado ar. Inspiro, expiro. O gato mia pedindo comida. Pela primeira vez em dois anos e meio, ignoro e continuo deitada. Mister Gray tenta mais um pouco; em cinco minutos esquece que tem fome e começa a se lamber no tapete turquesa e cor-de-rosa.

(Começando pelo gato, há uma lista enorme de libertações me esperando debaixo da palavra Não.)

Levanto do sofá e caminho até a mesa da cozinha para fazer a lista de resoluções de ano novo. 2022 foi um ano estranho. São quase três anos morando aqui no interior de Portugal. Algo me espera. Alguma coisa precisa mudar, mas não sei direito o que é.

Pego caderno e caneta:

- Pedalar mais

- Fazer yoga toda manhã

- Meditar meia hora por dia

- Ser consistente no Instagram

Minha lista é medíocre e hipócrita; já sei que os planos não vão dar muito certo. Se fosse para ser, já teria acontecido. Mas escrevo a lista mesmo assim. Não sei para onde estou indo, mas sei que alguma coisa precisa ser diferente e eu volto pra essa sensação, coloco um cobertorzinho, protejo a chama minúscula da certeza vaga que continua acesa no meio da minha floresta de dúvidas. Tomo um gole do café com leite meio frio e deixo de lado a folha de papel, os itens pulando um a um feito uma apresentação angustiada de power point.

O gato volta a miar.

O sol está se pondo; não é dia nem noite. É aquela hora em que os objetos ficam meio confusos e a gente tem que se beliscar para não esquecer que é de carne e osso. Tem algo em mim que já está mudando. Talvez o bicho que mora entre barriga e costela tenha acordado.

A gente não precisa saber de tudo.

Entre cada item da minha lista estúpido há o espaço de uma linha.

Fecho o caderno.

Olho para ele com um contentamento sem ambição. O espaço de uma linha, só isto. Basta uma fresta para o que é novo poder entrar.

Feliz ano novo. Um ano novo cheio do desconhecido, do Grande Mistério, de músicas improváveis e descobertas capazes de reposicionar seu eixo gravitacional. 

Obrigada pela paciência de me acompanhar aqui nesta Newsletter. Do meu lado, sei que só posso continuar com o Sofá da Surina se for para escrever sobre o que é importante pra mim. Do outro lado da página, sei, também, que é só por causa da sua abertura compassiva que os textos que escrevo podem cumprir o seu destino. E o destino dos meus textos é o de serem lidos por você.

I find myself wlaking in strange places sometimes (aquarela, nanquim, carimbo)

* O trecho da Rebecca Solnit é uma tradução livre que fiz a partir do original em inglês A Field Guide to Getting Lost“. O trecho original é este daqui: “Leave the door open for the unknown, the door into the dark. That's where the most important things come from, where you yourself came from, and where you will go.” “The art is not one of forgetting but letting go. And when everything else is gone, you can be rich in loss.”


Ah! E que todxs vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,

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#21. Balanço de fim de ano

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2 Comments
Denise Gals
Writes Aprendiz de Escritora
Jan 2

Obrigada por essa inspiração, Mari. Seus textos são necessários e esperados. Não escrevi resoluções, mas elas parecem que estão escritas na mente. Preciso voltar a praticar Lion Gong e meditar pela manhã. E apreciar mais o silêncio .

Um ano bom pra você.

Beijo, menina

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Brenda Bellani
Jan 3

Feliz ano novo, Mari! Agradeço pelas leituras sempre inspiradoras. Um beijo.

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