Nunca antes eu havia visto paredes como aquelas: amarelo-pastel, pintadas do chão ao teto com criaturas caminhando pelos céus. À altura dos olhos, tudo acontecia entre nuvens numa paisagem celestial, mas era um paraíso de outra ordem. Um paraíso de outra língua, de outro tipo de inteligência para a qual me faltava tradução
: as colunas de madeira da sala tinham sido esculpidas com dragões dourados de feições assustadoras e patas agarrando esferas que não tenho ideia do que representam. Talvez um fruto sagrado, talvez um princípio secreto de que eram guardiões. Dava para ver os músculos contraídos no corpo dos seres míticos. Soube imediatamente que aqueles dragões eram protetores de um tesouro especial e
misterioso.
E nas paredes – de novo, nas paredes -, também as pinturas me apresentavam criaturas terríveis com dezenas de braços e olhos enormes. Caveiras, cadáveres humanos no chão, seres de rosto vermelho ou azul celebrando a destruição com a língua para fora.
Tomei dois passos de distânciasem reações de amor ou de medo. Certos estímulos são demasiado esquisitos para provocar resposta compreensível. Fiquei parada, sentindo o ar frio que entrava pelos vãos das paredes de madeira. Tudo era de madeira, aliás: chão, teto, parede, pilares, e apesar de maio correr solto no hemisfério norte, o ar tinha parado no gelado do inverno. Será que tem verão aqui nos Himalaias?, foi meu último pensamento antes de continuar caminhando pelo salão, que de grande não tinha nada
um pé direito normal, oitenta metros quadrados (se tanto)
copos de água no altar.
Eu estava
só. Segui em frente até chegar à parede verde-clara do outro lado. Ainda era céu; via-se pelas nuvens pintadas de cinza-claro. Os monstros, por outro lado, tinham desaparecido, substituídos por seres humanos
cabelos raspados
roupas monásticas
pose de meditação. Nunca os tinha visto antes, como pode?, quem são? Passei tantos anos da vida perambulando por templos; com certeza daria para reconhecer as figurinhas carimbadas dos santos da tradição - Milarepa, Guru Rinpoche. Mas naquele templo, não. Naquele templo eu não conhecia ninguém, porque naquele templo TODAS as criaturas
os monstros
as pessoas sentadas em roupas monásticas eram
mulheres. Monjas históricas e deidades femininas sobre as quais nunca ouvi falar, e principalmente aquelas que chamamos de deidades iradas porque manifestam a não tolerância ao ego. No budismo, o princípio feminino representa a sabedoria
, lembrei da frase da venerável monja budista Tenzin Palmo. É uma frase curta que esvazia a subserviência à qual o patriarcalismo nos reduziu. Só quem conhece a natureza profunda da existência é capaz de destruir a auto-ilusão aprisionadora que nas tradições não-dualistas referimos como ego. No budismo, o princípio feminino representa a sabedoria.
Aquele lugar, aquela arte – de repente tudo me pareceu excessivo. Por que forçar a barra com um lugar feito só de santas e deusas mulheres?
- Porque todos os templos que você visitou na sua vida até este momento tinham apenas imagens masculinas e você nunca achou excessivo
, respondeu a Lucidez.
Às vezes a gente caminha numa trilha estreita mas não sabe que é estreita porque ninguém explicou que a estrada é maior. Não que seja uma necessidade (não é): mulheres ou homens, bem como humanos não-binários. Para a minha tradição espiritual, todos temos o mesmo potencial.
Mas ali, no templo daquele monastério feminino no meio dos Himalaias - naquele momento eu senti no corpo pela primeira vez que eu, também, era Buda
despertando.
Notinhas
“Costumo dizer que a fé foi a minha primeira expressão queer porque a prática da fé sempre foi algo muito libertador para mim (…)”. Saindo da caixa: minha dica de hoje é a entrevista que a Caroline Souza fez com a monja budista não-binária Tashi Choedup para a Revista Bodisatva (primeira parte). A segunda parte da entrevista você pode ler aqui.
Obrigada, Monja Tashi Choedup. Agora também consigo nomear meu sentimento: queer. Sempre me senti esquisita mas só aos 34 entendi que era vontade de ser monja. Escrevi sobre isto nesta edição aqui do Sofá.
Daqui uma semana estou de viagem, então o Sofá da Surina já entrou em ritmo de Índia. Vamos ver o que acontece com o fuso, ensinamentos e o trabalho para a exposição (estou indo expor as minhas ilustrações!)… De qualquer modo, prevejo que em outubro e novembro teremos edições sobre viagem, templos e arte budiststa.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
boa viagem!!! já estou esperando seus textos no retorno!!
Sua arte, escrita e desenhada, é mel! Boas andanças!