Depois de 35 dias e 815 quilômetros caminhando, a verdade é que cheguei a Santiago de Compostela com vontade de chegar.
A outra verdade é que cheguei a Santiago de Compostela com vontade de não chegar.
Ando por aí com dois sentimentos opostos no peito. Do lado direito, sou habitada pela sensação de que era mesmo hora de terminar a peregrinação. Estou com a perna machucada e no limite das forças.
Meu lado esquerdo, contudo, é tomado por uma vontade mais simples: parar é bobagem. Esta outra voz explica que a minha mochila de seis quilos e meio é suficiente para as minhas necessidades, e que tudo de que preciso está disponível logo que acordo e saio para caminhar.
Qual sentimento é mais verdadeiro?
Queria dizer que são ambos e que os sinto na mesma medida, mas é mentira.
O sentimento mais verdadeiro é o segundo. Se pudesse, continuaria caminhando mais 30 dias de Santiago de Compostela até minha casa, no sul de Portugal - ela fica 125km mais perto do que a distância que já caminhei até agora.
Chegar a Santiago de Compostela foi uma experiência estranha.
Na cabeça, guardamos uma ideia comum sobre finais: chegar é uma espécie de redenção. As histórias clássicas me treinaram. Frodo, por exemplo, finalmente se liberta ao destruir o poderoso anel de Sauron. As histórias de fada da infância tinham o enigmático felizes para sempre, claro, e Harry Potter passa por dificuldades mas no fim derrota Voldemort.
Depois de caminhar 815km com mochila todos os dias, sem dia de descanso e com
chuva
duas lesões
frio
percevejos
e uma gripe
eu estava pronta para o desenlace da minha próprio jornada. O sofrimento e o esforço seriam substituídos ao fim por uma satisfação absoluta e inquestionável diante da catedral de Santiago
: foram muitas as provações, mas estou aqui.
Ao chegar não senti nada
disso.
Escrevo este texto da mesa da cozinha de casa, a 690km de distância e 36 horas depois de deixar Santiago de Compostela. A distensão muscular ainda dolorida na perna esquerda e as roupas lavadas a mão por um mês nos albergues do Caminho são lembranças ainda frescas da experiência de caminhar, que há muito pouco virou
passado. Queria poder escolher minhas impressões preferidas e congelá-las no corpo para usar agora. Queria que os dias do caminho pudessem ficar presentes em
mim para sempre. Queria acordar todo dia com a sensação de pular da cama do abergue às cinco e meia da manhã sem preguiça, preparar minha mala de poucos quilos e caminhar, recebendo o dia à sua maneira, não à minha.
Queria que estas memórias recentes pudessem se tornar o meu presente. Sentada nesta escrivaninha, queria ter a sensação de que estou
caminhando.
Mas já sei que é uma batalha perdida.
Os dias que vivi e que agora quero manter respirandoà força só permaneceram vivos enquanto estavam sendo
vividos. É tipo um músculo que ativamos ao
caminhar. O músculo sempre está ali, na batata da perna, mas ele se cala quando estou em repouso. Se sento na cadeira, por exemplo, para escrever este texto
ou durmo
meu músculo da batata é um músculo que só tem o nome de músculo. Ele revelará sua plenitude muscular enquanto estiver ativo: nervo motor, sangue bombeando, contrações das fibras musculares. Quando isto acontece, aquele pedaço de corpo se transforma em movimento. Nos momentos em que não faço uso dele, sobra apenas o nome
músculo.
O nome não dá ao músculo a essência de músculo.
O presente só vive o presente.
Após caminhar, minha caminhada virou passado e voltou ao repouso.
Sou um músculo também.
No último dia do caminho me deu preguiça. Eram as minhas pernas se recusando a continuar. Faltava mais 4 quilômetros e elas começaram a boicotar a chegada à catedral de Santiago, mas fui até o final.
Atravessei uma porta arredondada de pedra e entrei numa espécie de túnel onde uma mulher tocava gaita de fole. Era bonito e barulhento. Do outro lado, o Lee me esperava de mochilinha com uma flor no bolso lateral. Nos abraçamos; ele chorou. Estava mais feliz do que eu.
Não sei se eu estava feliz de chegar à catedral ou de encontrar o Lee. Ficamos ali na saída do túnel por bastante tempo.
Não foi bem chegar em Santiago. Sou uma estrangeira, ele também. Moramos num país que não é o nosso lugar de nascimento, então encontrar com Lee é como comer um pão de queijo. É uma sensação muito rara de chegar em
casa.
Minha querida amiga Marijn, que conheci caminhando, me enviou uma mensagem no celular na tarde em que pus os pés em Santiago.
- Como é a sensação de chegar? Deu alívio? Você ainda quer continuar caminhando?
- Não sei como me sinto, Marijn... É tipo atravessar uma ponte dentro de um sonho.
O Caminho é um sonho que vai sendo construído ao longo de semanas de caminhada. É feito com a repetição da rotina de acordar cedo
colocar a mochila nas costas
e caminhar. É mesmo uma realidade paralela, diferente da vida ordinária. Ainda assim, o Caminho não tem nada de extraordinário. Já na segunda semana, vira o pão de cada dia.
Caminhar, perna, mochila, estrada.
No começo, o caminho não é o caminho porque ainda não existe. Você é aquele peixe que não entende bem a textura da água. Você não conhece ainda a dor, nem a recorrência da dor, nem os limites da dor. Ou da velocidade que pede uma subida
ou como descer sem machucar o joelho.
De tanto fazer, todo dia, um dia você descobre que está dentro de um sonho. Este sonho tem o seu nome
e o nome das suas pernas
e se chama Caminho.
O monge zen Thich Nhat Hanh (1926-2022) escrevia poemas e depois os pintava em papel com a sua caligrafia. Tem um que eu gosto muito:
Cheguei a Santiago na minha data mística particular.
Em 2013 saí de casa no dia 14 de junho para fazer uma viagem de bicicleta de duas semanas. A viagem durou mais de três meses e depois dela larguei o doutorado, o emprego, o país, minha casa e tudo mudou. A viagem virou este livro aqui.
Uma década mais tarde, dou-me conta que chego em Santiago no dia 14 de junho. Não era para ser, nunca foi um plano. Acontece que machuquei o tornozelo e depois a perna. A previsão era chegar no dia 12, mas cheguei no 14.
Espero que muitos livros meus venham depois da viagem, mas desta vez não desejo escrever sobre ela.
E agora? Sobrou o que?
Há dez anos, enquanto fazia minha aventura solo de cem dias, encontrei outros que como eu estavam viajando de bicicleta. Conheci cicloturistas que estavam há seis, oito meses, um ano, cinco anos na estrada.
Eu era capaz de entende-los. Eu sentia o mesmo. Eu não queria voltar. Eu queria continuar
viajando. Passados três meses de pedal, a Terrível Volta virou uma obsessão recorrente. Por que é que eu não desejava voltar? Por que é que eu gostava tanto de seguir no selim? Não consegui encontrar estratégia para lidar com a situação, por isto agarrei-me a um insight sem solução fácil que me serviu de resposta:
Não posso aceitar viver uma vida que seja pior do que esta viagem. A minha vida não pode ser pior do que pedalar. Se a minha vida for pior do que viajar de bicicleta, então eu vou continuar pedalando e pedalar vai ser a minha vida.
Mais do que as memórias ou as amizades: de tudo, esta conclusão foi a coisa mais importante que levei daquela viagem de bike. Era uma promessa surgida da minha experiência - a impressão de que a vida podia ser diferente.
A promessa era pequena tipo um passarinho bebê que mal consegue comer e precisa de ajuda para ficar forte. Dei muitas minhocas no bico desta promessa. Construí um ninho para ela. Nos anos seguintes, a promessa foi a minha bússola, a minha esperança e a minha
salvação. Um dia, ela finalmente se misturou à minha vida.
Uma década mais tarde, encontro minha promessa de novo. Da viagem para Santiago, o que me sobra? Thich Nhat Hanh era mais simples, sábio e eloquente do que eu, então tomo emprestado o poema dele para usar de aspiração e caminho:
Uma prática simples para chegar
“Imagine que você está em um avião voando para Nova York. Ao sentar-se na poltrona, você pensa: ‘tenho que ficar aqui seis horas até chegar’. Seus pensamentos estão só em Nova York; você não consegue viver os momentos que lhe são oferecidos agora.
Mas é possível você pode estar no avião aproveitando cada passo do caminho. Não é preciso chegar para ficar estar tranquilo e feliz. Caminhando para o avião, cada passo lhe traz felicidade. Você chega a cada momento. Chegar significa chegar a algum lugar. Quando você pratica a meditação andando, você chega a cada momento – você chega ao destino da vida. O momento presente é um destino. Inspirando, dou um passo e outro passo e digo a mim mesmo: ‘cheguei, cheguei’.
(…) Ao inspirar, você se refugia na inspiração e diz: ‘cheguei’. Quando você dá um passo, você se refugia nele, dizendo: ‘cheguei’. Esta não é uma declaração que você faz a si mesmou ou a outra pessoa. ‘Cheguei’ significa que parei de correr. Cheguei ao momento presente, porque só o momento presente contém a vida. Quando inspiro e me refugio em minha inspiração, toco a vida profundamente.”
(Thich Nhat Hanh. Tradução livre de Peace begins here)
Ah!, e que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Nossa, que texto emocionante. Lindo, rico. Obrigada ❤️
Levei o poema comigo (ou seja, ele permanece na tua carta). Obrigada por partilhar tanto 💛