Olhando de perto com toda honestidade que me é possível, venho aqui para me confessar. Descobri recentemente - com um pouco de espanto - que grande parte dos espaços da minha existência foram tomados.
O meu vestir, as coisas que digo/não posso dizer, o modo como me comporto, os temas que estudo, e mesmo a escolha nutricional que adoto para os gatos de casa - tudo isto funciona, em maior ou menor medida, segundo parâmetros sociais chatíssimos, tipo
: ganhar dinheiro
ser uma boa pessoa
causar a impressão certa
tentar não ferir vaidades
etc. Junto desta triste constatação de que minha existência foi colonizada por deveres cívicos de toda sorte, entretanto, também encontro um minúsculo cone de luz. Notei que existe uma atividade
-pelo menos uma atividade-
que desempenho por puro prazer. É uma atividade invisível para todas as pessoas com as quais convivo; uma atividade que protejo desde menina. Aqui ninguém entra. Há, dentro deste meu corpo, um terreno baldio e inútil onde reina a Absoluta Liberdade, e este território íntimo é em grande medida responsável pela minha sanidade mental até hoje.
A atividade que exerço com plena liberdade é esta
: gosto de ler, leio bastante e só leio o que quero. Adoro sugestões, mas ninguém - repito: ninguém - me impõe leituras obrigatórias.
Posso até fingir que aceito se der muito trabalho contrariar, mas jamais obedecerei.
Minha solitária liberdade de leitura, como você deve imaginar, gerou hábitos pouco ortodoxos. É a primeira vez que falo sobre eles sistematicamente. São muitos, e entendi que vou precisar de muitas edições do Sofá para confessá-los, um por
vez.
Vive dentro de mim uma leitora selvagem que recusa a domesticação. Leio livros bem lindos e outros cafonas.
Às vezes prefiro os cafonas.
Leio o que está fora de moda e o que é tendência, autoras e autores execrados pelo bom gosto, leio gente que escreve com elegância e às vezes recebo com alegria títulos considerados menores.
Podem até falar mal destes livros pequenos e rejeitados. Acontece que muitos deles são imensos para mim.
Estas são as minhas leituras (maravilhosas) das últimas duas semanas: Never let me go (do Kazuo Ishiguro), Como se fosse um monstro (da Fabi Guimarães), Todo o tempo que existe (da Adriana Lisboa) , O Mago - uma biografia do Paulo Coelho (do Fernando Morais) e A Gata do Dalai Lama (David Nichos).
No mundo da culinária, há o que chamam de comfort food - aquela comidinha gostosa para a qual a gente volta quando tá tudo esquisito e o que precisamos é aconchego. Pão de queijo, pipoca, café com leite, bolo de fubá.
No meu mundo secreto de leitora, tenho minhas comfort leituras. Se estou perdida num domingo à tarde de catástrofes ou tédio, tenho sempre uns autores para os quais volto com o propósito de lembrar quem
sou.
As comfort leituras do meu mundo funcionam de um jeito específico: há sempre uma autora ou um autor, nunca dois, que ficam comigo por muitos anos. Sou absolutamente monogânica nas minhas comfort leituras.
No final da década de 90, minha comfort leitura foi o Saramago. O que faço da vida aqui, meu Deus?, eu pensava lá em Curitiba, no meio da terrível faculdade de direito.
Aí eu pegava um Saramago da biblioteca pública, lia, e ao fechar a última página o mundo ficava lúcido de novo. Pelo menos lá em Portugal vive uma pessoa sensível. Ainda bem.
Depois foi a vez do Paul Auster. Estivemos juntos na primeira década dos anos 2000. Ele foi o lugar da rua, do perder-se, da existência como jogo. Eu era urbana e sentia-me à margem; os personagens dele, também.
Não lembro de nenhum enredo dos inúmeros títulos do Paul Auster que tive a sorte de ler nesta encarnação. Mas lembro exatamente da voz literária dele falando diretamente a mim, leitora, feito um espírito conselheiro encarnado na outra metade do hemisfério.
Foi depois do Auster que surgiu o meu mais intenso caso de amor. Em 2011, alguém me emprestou um livro do Murakami enquanto eu atravessava uma depressão terrível em Genebra. Por uma razão incompreensível, por uma razão incompreensível, mesmo, o livro distópico do Murakami me trouxe paz no tedioso inverno branco suíço. Curiosamente não foi a literatura utópica que me salvou de mim mesma: além da minha bicicleta maravilhosa, foi a a compaixão daquela distopia literária murakamiama que me abraçou. Você não é a única, o protagonista daquele mundo horroroso criado pelo autor japonês me consolava, eu sei como é, e não é fácil.
Um dia um amigo me deu um longo sermão daqueles bem mansplaining horrorosos quando comentei en passant que gostava do Murakami. Eu estava perdendo tempo, não era literatura, devia gastar minhas horas vagas lendo autores de verdade (dizia estas barbaridades), e insistiu para que eu lesse o Coetzee, seu preferido.
Não respondi porque ia dar muito trabalho conversar com uma parede.
Além de tudo, foi um desserviço ao seu autor preferido. Depois daquele dia, passei pra frente, sem nem abrir, os livros do Coetzee que por coincidência estavam na minha pilha de próximas leituras.
Aí vieram as mulheres.
Só parei com a Natalie Goldberg porque li todos os livros dela. Foi muito difícil não ter mais a presença dela como comfort leitura. O fim da nossa relação ainda me causa dor; toda semana entro no site para ver se ela anuncia se vai lançar um próximo título.
No momento, seguro na mão da Adriana Lisboa, e é como estar num mar. Talvez ela nunca saiba, mas tenho a impressão de que por dentro das fibras do tempo e do espaço, por detrás da dimensão material, a narrativa ampla dela é minha melhor companhia. Poucas coisas me deixaram mais feliz nos últimos anos do que ler o Rakushisha.
Quando eu morrer, se tudo der certo, meu corpo vai respirar pela ultima vez enquanto eu entro num jardim bem grande cheio de pés de pitanga manga abacate pinheiro castanhas. Serei recebida por seres de luz: gatos e todos os autores de comfort leituras que li, e, se tudo der certo, lerei até lá. Se tudo der certo, serão muitos: gatos e livros.
Notinhas necessárias
Este texto está sendo escrito do celular porque me recusei a trazer computador para a Flip. Peço que você, aí do outro lado, tenha paciência com os erros gramaticais e de digitação.
Esta semana tive que fazer uma mudança na editoria: tinha previsto responder as perguntas que vocês me enviaram, mas não consegui acessá-las porque não trouxe o computador para Paraty. Por isso, então, troquei a ordem dos temas: nesta edição falei de hábitos de leitura e na próxima farei a Surina Responde, tá bem?
Além deste Sofá, eu também escrevo livros lindos. Quer conhecê-los? Eles estão à venda aqui:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Como um ordinário Millennial, minha comfort leitura é Harry Potter. E eu amo.
Mas, ultimamente tenho buscado "discomfort" leituras, ando fugindo da minha zona de conforto literária (uma busca pessoal – passei tempo demais nela). Isso me trouxe grandes leituras como Mary Shelley, Edgar Allan Poe, Lovecraft, e muitas outras coisas. É uma questão de equilíbrio. Quando eu voltar a HP, penso que será mais acolhedor do que nunca.
Creio que a literatura seja para nós tanto Abrigo como Movimento, não? Depende do que nos permitimos viver.
Muita luz pra ti, Mari!
Ah, que delícia de edição 💓💓💓 Newsletters de gente querida são, para mim, também esse espaço de conforto e afeto quando tudo tá meio - ou inteiro - virado ☺️🌻🥰