Tem três anos que comecei a fazer freela de garçonete num restaurante da vila. É um restaurante especial e posso dizer com certa ironia que o dono é um velho conhecido. Os outros garçons e os cozinheiros são meus amigos; o restaurante é uma espécie de
família.
Já disse que é um lugar especial? Do lado de fora, as mesas são cercadas por um jardim tão verde que no tempo que dura a refeição a gente esquece que mora num deserto. Na parte de dentro, mesas coloridas dividem o espaço com retratos imensos, impressos em tonalidade sépia. As fotos ficam na parte de cima do balcão, acima de onde saem os pratos de
comida. É feito um portal: antes de chegar à mesas, os burgers e os ensopados de frango recebem um axé dos sujeitos dos retratos.
Gosto de olhar para as fotos porque elas não representam pessoas óbvias. Temos uma da Amma (a mulher indiana que dá abraços) e outra da Annandamayi Ma, um avatar feminino belíssimo que viveu na Índia no século XX. Depois vêm os homens: Ramana Maharshi (o santo de Tiruvannalai, imortalizado pelas lentes de Cartier-Bresson) e Papaji, professor do meu professor. Também temos Fernando Pessoa e Bob Marley.
Adoro ver o Pessoa e o Bob no rol das iluminações. Eles me lembram que a luminosidade do espírito é uma qualidade que está por aí
em muitos lugares
não apenas nas vacas sagradas.
Se o restaurante fosse meu, teria fotos de Gary Snyder, Bjork, Meredith Monk, Leonard Cohen, Gilberto Gil e Hayao Miyazaki.
Quem você colocaria no seu altar?
Conte-nos sobre seu axé preferido.
Nunca entendi como fui parar neste restaurante. Principalmente, não sei por que continuei trabalhando nele. Certamente não é pelo ordenado, pequeno demais para o meu custo de vida (trabalho poucas horas por semana).
Quero pensar que há algo de outra ordem que me mantém ali.
Todas as vezes que entro no restaurante, sinto-me um peixe na água. Os corredores entre as mesas são o meu elemento natural - deslizo através do vão na porta de trás antes de abrirmos e vou arrumando tudo que precisa ser arrumado meia hora antes do turno começar. Encho as garrafas de azeite, limpo as mesas com um pano úmido, checo as reservas, visto o avental e o uniforme, sento para comer com os colegas.
Cada dia a cozinha prepara uma comida diferente para a equipe. Às vezes é algo gostoso.
Às vezes é algo de que não gosto, tipo bife. Em dias assim, como pão com salada.
Às vezes é leve.
Às vezes, gordurento.
Frango com osso, por exemplo, eu não encaro. O Buda e sua congregação de monges andava pelas vilas pedindo comida. Comer o que caía na tigela era uma prática de equanimidade.
Uma vez, o que caiu foi o dedo de um homem que tinha hanseníase. Conta a lenda que o austero discípulo Mahakasyapa foi em frente com a refeição:
tudo que é oferecido, aceitamos à luz do dharma.
Sentada com um pedaço de pizza diante dos olhos, penso muito romanticamente
esta é a minha tigelinha
, sabendo que não tenho tanta equanimidade assim.
Do outro lado do balcão, os meninos nepaleses que trabalham na cozinha perguntam como está o meu marido. Conto que viajando.
- De novo?
- Pois é, ele viaja muito.
Perguntam também se terminamos de construir a casa e eu respondo que sim, está tudo bem, e eles insistem que precisamos fazer um house warmimg, uma festa para celebrar nossa mudança. De jeito nenhum, tenho aversão de eventos com muita gente. Não, não Surina, é outro tipo de house warming.
Saio do almoço com uma lista de compras escrita numa caligrafia bonita, o papelzinho rabiscado em inglês
: incenso, flores costuradas numa guirlanda, velas e (principalmente) uma imagem de Ganesha, o Deus-elefante, para colocar na entrada da casa
- Hein?
- É proteção, Surina.
Eles prometem que irão atrás dos mantras para recitar direitinho. Quando chegar o dia,
eu e o Lee ficaremos sentados à porta do lar com nossa guirlanda de flores no pescoço
ao lado de Ganesha
enquanto eles recitam preces para abençoar a casa nova.
A maior parte dos nossos clientes mora na vila. Fora um charmoso restaurante japonês de poucas mesas, somos o único lugar que serve almoço e janta no povoado.
É muito fácil identificar quem está no nosso restaurante pela primeira vez: são aqueles que olham as fotos com cara de quem não entende nada.
Afinal de contas, o que é que Bob Marley faz do lado de uma santa?
- São pessoas que nos mostram outras formas de viver
, digo.
Não só para os clientes - digo também para mim. É bom lembrar que no meio deste furdúncio chamado samsara há pessoas nos apontando um caminho mais interessante.
Um dos meus maiores medos é o de encontrar um antigo conhecido sentado numa das mesas durante meu horário de trabalho. Com meu uniforme colorido e avental preto, eu chegaria até os novos clientes:
- Posso ajudar?
, e então descobriria que um deles é um antigo colega do tempo em que eu trabalhava na repartição pública em Brasília.
Minhas bochechas ficariam vermelhas.
As orelhas queimando.
Suadeira embaixo do braço.
Rolaria aquele silêncio horrível que confirma estranhamento e separa o mundo em classes sociais. Tentando afastar o elefante branco do meio da sala, lançaríamos mão do óbvio:
- Nossa, não sabia que você estava trabalhando aqui.
Silenciosamente, o colega pensaria meu Deus, a menina que era assessora do secretário executivo virou garçonete aos quarenta anos.
Eu, por outro lado, tentaria me esconder e fingiria um sorriso para esconder outra mensagem silenciosa:
- Pois é.
Depois disso, sairia correndo de vergonha, trocaria de lugar com outra garçonete, que cara é essa, Surina? O que aconteceu?
- Nada, nada. Preciso sair mais cedo hoje.
Uma vez atendi um cliente que sentou numa mesa perto das fotos. Ele era cego e eu não sabia como servi-lo.
- Desculpe, é a primeira vez que atendo alguém com deficiência visual. Vou descrever tudo pra você.
Ele concordou. Ainda não sei se seria a melhor maneira de servi-lo, mas quero pensar que ele era genuinamente generoso para aceitar meu esforço. Nosso prato do dia é frango com molho de manteiga. Estou colocando os talheres à sua frente – garfo à esquerda, faca à direita. Ao alcance do seu braço direito está a maionese. Você quer ketchup?
Conversamos a noite inteira. O homemera brasileiro e morava em Portugal há quinze anos. Trabalhava como músico; estudou em São Paulo.
- E você?
- Sou advogada. Fiz faculdade em Curitiba e mestrado na UnB.
- E por que é que você está atendendo mesa em restaurante?
Estou atendendo mesas em restaurante porque o dono do restaurante é meu amigo.
Estou atendendo mesas em restaurante, mas na verdade sou artista.
Estou atendendo mesas em restaurante, mas no fundo sou escritora.
Estou atendendo mesas em restaurante, mas não estou atendendo mesas em restaurante.
É só uma fase.
Sabia?
Eu tenho uma casa com três gatos lindos ali no alto do morro.
Não são os outros. Ou não são só os outros.
Levo julgamentos e classes sociais dentro do meu corpo.
Hoje em dia contenho os ímpetos. Sou econômica nas respostas.
Lembro do Buda, que era príncipe e depois mendigo e se iluminou e continuou caminhando.
Como será que ele respondia quando os antigos amigos da realeza o encontravam com sua tigela em busca de comida?
Respondo o que posso responder. Ainda tenho medo de topar com um antigo conhecido.
Mas hoje em dia, enquanto estou no restaurante, deixo as autojustificação de lado.
Sou a garçonete que está atendendo a sua mesa esta manhã.
Notinhas
Já escrevi outras Confissões de uma Garçonete para falar de karma yoga. Você pode ler aqui.
Entre os dias 15 de outubro e 15 de novembro vou estar nas terras do Buda - mais precisamente em Bodhgaya, o local onde o Buda atingiu a iluminação. Tive a felicidade de receber um convite para participar de uma exposição coletiva de arte budista. A exposição vai acontecer no Mahabodhi Temple - o principal templo da cidade, sob a Bodhi tree.
Ainda não sei se vou conseguir escrever enquanto estiver viajando. Será minha quinta passagem pela Índia, mas nunca foi como agora: assim que comprei os bilhetes, minha pressão baixou e acordei com lambidas de gato na cara. Foi muita emoção.
Então é assim: pode ser que rolem uns Diários de Bodhgaya em tempo real, mas para evitar contratempos já estou preparando textos prévios muito carinhosos para as edições de meio de outubro/meio de novembro do Sofá da Surina.
Esta Newsletter é gratuita e por enquanto quero que continue assim. Se você gosta e lê frequentemente, considere apoiar o Sofá da Surina na Índia pagando um chai para a escritora.
O Sofá da Surina é uma Newsletter que chega até você aos sábados de manhã, exceto no último fim de semana do mês. Sábado que vem é o último de setembro, dia de descanso do Sofá. Isto quer dizer que nos vemos de novo no dia 1 de outubro.
Ah!, e que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima
,
atender as mesas no restaurante do amigo no vilarejo é um milhão de vezes mais legal do que trabalhar numa repartição pública em Brasília.
é óbvio. haha
adoro vc, Surina. ansiosa já para ler sobre a Índia direto da fonte. 💗
Eu colocaria a Donna Haraway.