Da primeira vez que ouviu a voz, o Buraco Negro sentiu que lhe cresciam crostas no tecido do tempo-espaço. Era um evento raro e pouco provável, concluiu, um evento mesmo inédito. Uma voz aqui?
Puxou pela memória recente, desceu ao fundo de si até o ponto denso onde existia com mais realidade e confirmou que não havia registros de vozes perfurando suas fronteiras em nenhum outro momento de sua existência cósmica.
Até ali a vida lhe tinha acontecido com relativa normalidade. De dentro da gravidade, o Buraco Negro observava as forças que se atraem, constatando que existir depende do quanto estamos dispostos a chegar
perto. Asteroides de órbita perdida que vagam na solidão do espaço, restos de satélites esquecidos e todo tipo de fragmento suspenso. Ao cruzar suas fronteiras, os seres primeiro se distorciam, depois perdiam a noção de antes e finalmente sumiam para sempre da vida de quem ficava do lado de fora.
Nem a luz. Nada escapa de um buraco negro.
Ignorando as probabilidades, uma voz caminhou pelo horizonte de eventos do grande poço sem fundo que girava no espaço. Olhando para dentro da cavidade vazia, anunciou, intacta:
- Estou aqui.
- Quem é que fala?
- Na verdade eu acho que sempre soube que um dia a gente ia se encontrar.
O buraco negro sentiu frio no corpo que não tinha e por um momento duvidou se existia. Frio, a palavra frio. Corpo, a palavra corpo. Crostas, aquela presença. A palavra presença. No fim das contas um buraco negro é um furo no vácuo, conhecedor principalmente das ausências e pouco familiarizado com vozes do além.
Na noite fria sem vento do cosmos, o imenso Buraco distinguiu as feições. A voz vinha de alguém com nariz pequeno, rosto redondo, pernas, chão branco que estalava. O ruído, os grãos, os pedaços
- É neve
, ela respondeu. Ele olhou de volta. Neve. Cristais que existem só por quinze segundos se em contato com o calor da pele. Depois escorrem. Água. Viu também quando a mão de um homem a tocou no ombro – Stella... – e a imagem desapareceu de uma vez.
Nebulosa.
Nada escapa de um buraco negro, a não ser a voz de Stella.
No dia seguinte se encontraram de novo:
- Estou aqui.
- Stella
, ele a chamou pelo nome. Mal se conheciam, responder o que? A mulher não se importava. Conversava com ele como se falasse sozinha:
- Gosto de sentar na praia à tarde. De assistir os icebergs em Höfn. Se você vem todo dia, dá pra ver que eles se mexem. Mesmo. É coisa de um centímetro por hora, mas se mexem.
O Buraco Negro aprendeu que a voz era de alguém com nome Stella e que o lugar de onde ela puxava conversa era o mesmo. Sempre o mesmo, um lugar de rochas como as de asteroides, de som de vento e de água líquida, que ele nunca tinha visto antes. Fora isso, não entendia mais nada. Buracos Negros não são especialistas na superfície dos planetas nem nas pessoas que os habitam. Stella propôs que se encontrassem todo dia
- dia?
, ele perguntou.
Aos fins de tarde, quando o sol estava a ponto de cair, a mulher se sentava na pedra à beira da praia:
- Estou aqui.
Ele podia vê-la, o cabelo preto acima da nuca raspada.
Ela não o via, mas tinha perguntas sobre o invisível:
Como é o espaço?
O que tem além da Terra?
Existem alienígenas?
Você já falou com Deus?
O buraco negro, que é um corpo celeste sem corpo porque lhe falta massa, respondia:
O espaço sideral é um lago escuro e frio mas sem neve porque no espaço não há água.
De vez em quando passa alguém – um cometa, uma espaçonave, um meteoro.
Deus é um assunto que não me pertence.
Mas eu vejo o tempo, porque o tempo é uma peça inteira que vive dentro de mim.
Ele era mais inclinado aos comentários breves. Quando se tratava da sequência dos acontecimentos, o imenso buraco se confundia. Ficava com a voz atrapalhada e normalmente dizia coisas desconexas. O que é antes e o que é depois para quem desconhece antes e depois? O Buraco nunca contava histórias compridas sobre a própria vida ou os acontecimentos galácticos.
- Me fala - quem está aí agora com você?
- Todos os seres que existiram e existirão convivem neste instante. No momento eu vejo as estrelas que nasceram, duraram milhões de anos e depois morreram, caríssima Stella.
Para um Buraco Negro, a vida é tão longa que encosta na eternidade.
- Você não sente tédio?
- Não, porque sou só um lugar que falta. Ser um buraco é ter força sem carne de onde venha; somos uma falta que acontece sem razão. Sou um mistério até para mim.
No décimo segundo encontro, Stella concluiu que a falta de noção de tempo era um problema. Sem saber de passado ou do futuro, o Buraco Negro se perdia em respostas para perguntas que ela ainda não tinha feito. Para seguirem na mesma linha, ela criou uma tradução:
- São seis meses desde que te chamei. O cabelo cresce dois centímetros por mês.
Stella desistiu dos coques e das tesouras; agora o Buraco Negro marcava o tempo pela distância dos fios. Curto, ele sabia que eram os primeiros dias. Na altura do ombro, que estavam conversando mais ou menos na altura dos primeiros anos. Stella de pescoço aparecendo. Franja. Ombro coberto. Cabelo na cintura:
-Stella, você faz quarenta e um anos de vida hoje, minha querida
, ele dizia.
- Oito anos, Stella. Já tem oito anos que te conheci.
O tempo foi passando e algumas vezes o imenso Buraco Negro desejou ter pele para alcançar coisas pequenas que podem ser agarradas com a mão, como uma concha. Stella, por outro lado, passou a sentir saudades de coisas grandes que não conhecia. Tinha vontade de se perder num território maior do que Höfn. Maior do que a Islândia. Maior do que o seu corpo
- É que eu nunca saí daqui.
Se viam todos os dias, e todos os dias Stella tinha perguntas, você já encontrou a morte? Como é o zero absoluto? Os ets falam? Você se sente sozinho? O cabelo de uma década fazia tranças até a cintura, um dia depois do outro dia, até que um dia
de repente um dia
àquela hora de sempre, na praia de Hofn, à tarde
Stella não apareceu. No seguinte, também não. Nem no próximo, no outro no outro nem no outro no outro. Da próxima vez que ouviu
- Estou aqui
, o Buraco Negro não sabia onde a amiga tinha se metido. Ela era a mesma, mas em volta faltava a praia, a neve e o cabelo, que já não estava.
- Por que, caríssima, você perdeu o cabelo de repente?
Stella deitada entre paredes azuis de um claro mais de céu do que de mar.
A amiga falou pouco, e aquilo lhe pareceu estranho. Estou aqui. Naquela tarde Stella não tinha perguntas, e assim continuou nas tardes seguintes. Dizia só a primeira frase:
: estou aqui.
Depois, silêncio. O Buraco Negro ficava quieto também, porque na falta de cabelo já não sabia a ordem do que vinha antes e do que vinha a
seguir.
Tudo que ele sabia era de Stella, das paredes azuis e do cabelo dela, que não crescia
mais. Apesar de haver perdido o relógio que levava preso à cabeça, os dias para ela passavam rápido
demais. O vermelho da sua boca virou um roxo claro. A parte de baixo dos olhos, um amarelo sem brilho. Ela lhe explicou:
- O tempo deste lado acaba.
O Buraco Negro notou que no lugar de onde Stella agora chamava, as cores eram outras. O hospital era diferente da praia e dos icebergs lentos de Hofn. Além do azul das paredes e do bege pálido do rosto, havia o vermelho das seringas e das bolsas plásticas. Havia o branco das cortinas fechadas e do teto:
- Já contei todas as rachaduras no cimento e conheço em milímetros aquela fissura minúscula quebrada no canto de baixo da luminária. O teto do hospital, na verdade, é um céu escondido. É como se eu estivesse olhando um outro tipo de céu. Em vez de conchas, os tubos
os canos
garrotes são viscosos como as algas.
Os sons de metal rangendo das outras mesas hospitalares
me lembram o som dos icebergs em Höfn quebrando no mar.
- Estou aqui.
Da última vez que o chamou, Stella parecia um holograma. O Buraco Negro conhecia os hologramas. Há milhares no céu. Quando se aproximam dele, os seres ficam transparentes para logo depois serem sugados pela gravidade. Naquele dia ela tinha uma pergunta:
- Se o universo é feito de milhões de buracos negros, como vou te encontrar quando for a minha hora de desaparecer?
O Buraco Negro fechou os olhos que não tinha. Stella fechou os seus. De dentro do escuro das pálpebras, a mulher que já quase não falava nem se mexia entendeu com o corpo que o cosmos é um lugar que não se move. Aqui é muito parado, o Buraco Negro gostava de dizer.
O cosmos era um lugar muito parado e muito leve, ela agora entendia o que ele tentava explicar. Na quietude do quarto de hospital, o último sopro de ar entrou fino pelos pulmões de Stella parecendo uma tempestade. Viver é assim, tipo um temporal. O oxigênio alcançou os alvéolos, se espalhou pelos órgãos e alimentou tudo sem excluir ninguém, fígado, rins, intestino, baço, o tumor espalhado por sangues e ossos. Ao fim da inspiração profunda, a rajada da expiração veio numa despedida.
- E agora o quê, meu amigo? E agora, o que sobra?
ela perguntou-lhe com a mente.
Ainda no corpo, Stella escutou por dentro do peito a resposta do Buraco Negro, de anos-luz do outro lado:
- Agora, minha caríssima Stella – agora
estou aqui.
Notinhas
-Primeira vez que temos ficção aqui no Sofá. Pois bem: na edição de hoje, trouxe este conto que eu adoro e que poucas pessoas tiveram a chance de ler. Ele foi escrito entre 2021 e 2024, ficou inédito um tempão até ser publicado no começo deste ano (2025) na Revista Júlia #3, da incrível editora Arte & Letra, lá de Curitiba.
-Sou autora de dois livros. Em formato físico, você encontra o 108 e O mundo sem anéis - aqui (entregas para todo o Brasil). Se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
-Quero agradecer a todo mundo que se inscreveu no Atelier de Escrita Reconectiva que vai rolar entre os dias 30 de maio e 27 de junho. Acho que vai ser bem lindo! As vagas acabaram, mas para quem se interessar eu aviso que uma nova turma deve abrir no segundo semestre do ano. Vou dando notícias por aqui.
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Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Lindo, emocionante. Obrigada Surina.
"o tempo é uma peça inteira que vive dentro de mim." uau