Meu corpo decidiu parar de obedecer.
Aconteceu subitamente de um jeito não planejado em outubro de 2020. Na noite antes de sair para um passeio de bicicleta pelas montanhas, observei no chão do banheiro do camping uma poça de sangue com pedaços de pele cinza.
O sangue escorria do meu corpo e empoçava no piso de azulejo cinza-claro. Desci para a motor home e chamei meu namorado que estava comigo há menos de dois meses e contei o que estava acontecendo.
Ele não se admirou muito.
No dia seguinte, subi a montanha de bike; ele me seguiu, fazendo a assistência na van. O sangramento continuou no selim. Na manhã seguinte, o fluxo aumentou. Dias depois, fomos à emergência do hospital universitário da cidade de Covilhã.
O médico-professor ficou bravo porque eu não tomava anticoncepcional. Pra mim, mulher que não se cuida é pressuposição de grávida irresponsável.
Cochichou algo para a enfermeira e fechou a porta. Eu o segui, não tenho nada a fazer, os exames deram negativo para gravidez, foi o que ele disse, e naquele momento amaldiçoei todos os ginecologistas homens, deviam ser proibidos de clinicar.
Saí do hospital sem resposta nem remédios & com uma conta em euros. Apesar de todos os absorventes e tampões do universo, o sangue escorria. Eu tinha vergonha de passear em lugares públicos, sem saber se o estofado da cadeira, o sofá, a almofadinha de meditação iam ser carimbados com uma mancha depois.
O sangue ficou escorrendo por quatro meses.
A anemia se instalou rápido. Era tanto sangue perdido que nenhuma reposição de ferro bastava. Agora eu passava a maior parte do tempo na cama. A falta de oxigenação severa passou a afetar o cérebro. Ler ficou difícil; eu escrevia aos poucos e em sessões de dez minutos.
Foi nesta época que comecei o Sofá da Surina. A Newsleter era mensal e cada edição demorava três semanas pra ficar pronta.
Um desejo incontrolável de comer me tomava. Não exatamente fome – outra coisa. Tipo um buraco. Entre 2020 e 2021, comi tudo que aparecia. Era uma experiência nova que não tinha nada a ver com qualquer desejo anterior por comida; meu corpo estava fraco, as calorias do alimento eram a forma de energia disponível. Obrigada, universo, pelos depósitos externos de poder. Pedaço de pão, queijo, coisas gordurosas.
Removeram minha capacidade de escolha. Se quisesse ficar de olhos abertos, eu precisava comer. Meu corpo cresceu. No restaurante, perguntavam se eu estava grávida. Só gorda, eu respondia.
Não que ele me obedecesse antes (o corpo), mas existia uma ilusão. A ilusão de que eu era dona do meu corpo. Eu mandava, o corpo obedecia. Queremos ser donas de tudo – é um jeito de liberdade. Lógica proprietária para os nossos membros, incluindo rins, fígados, fibras musculares e todas aquelas partes que tão generosamente funcionam
em nosso benefício
sem que a gente sequer saiba.
Muitos médicos, anticoncepcional e uma acupunturista depois, o sangramento teve fim. A anemia, por outro lado, continuou.
É que demora alguns meses para o ferro voltar ao normal.
Um dia entrei no mercado e meus olhos enxergaram uma linguiça dentro de uma embalagem de plástico bege. Pedi duas e comi na fila do caixa, com as mãos e sem guardanapo.
Este foi o fim da vida vegetariana que levei com toda a alegria do mundo por 12 anos. Não tive dor de barriga nem qualquer problema de adaptação. Ninguém que me viu comendo aquela salsicha no caixa do Supermercado Pingo Doce imaginaria que algum dia na vida eu tinha parado de comer carne.
Fiquei mais ou menos um ano sem conseguir pedalar direito. Minhas roupas pararam de servir. Nossa, você está amarela e gorda
, disse uma tia.
Eu, por outro lado, me achava bonita com o novo corpo.
Comprei um par de leggings com estampa de tigrinho que imitavam até o pelo do bicho. Minhas bochechas voltaram a ganhar alguma cor. Adotei tops curtinhos. Era um corpo que pela primeira vez manifestava minha experiência real de vida mais do que minha vontade de
controla-lo.
Peso é um número. Apesar dos dígitos, eu me achava mais leve. Passei a vida inteira querendo ser esquelética mas mesmo abaixo do peso eu tinha um pernão e me sentia enorme. Agora, doente e sem a pressão de possuir a forma perfeita, aquele corpo era eu e ao mesmo tempo emprestado. Era um corpo não definitivo, liberto de tantas imposições.
Comecei a desenhar mulheres grandes e redondas.
Parece que eu sempre tinha sido assim.
A anemia melhorou um pouco e o sangramento mais crítico também, mas desde então meu corpo não obedece mais. É um mistério que ja desisti de entender só pela medicina. Há inchaços, sangramentos menores, sangramentos maiores, anemias, perdas de peso, ganhos de peso, períodos terríveis em que tenho que tomar anticoncepcional, outros em que esquento um bastão de acupuntura e enfio no pé duas vezes ao dia, épocas de muita energia, épocas de alergia sinistra. Parei de tomar leite e comer açúcar. Neste momento perdi a escolha de ser vegetariana do jeito que eu era. Não dá, simplesmente não
dá. Restou só a escolha do tipo de carne e a frequência do consumo.
Não gosto de comer animais e várias vezes tenho náusea. Sinto um desconforto tremendo e sonho com o dia em que poderei ser vegetariana de novo.
Tenho saudades daquela outra versão de mim que tinha mais liberdade de escolher, mas confesso que gosto mais da vida agora que abandonei as pretensões corporais. Só tendo me restado o foda-se, noto a quantidade de vida que perdi enquanto continuava obcecada pelo desejo irrealizável de ter uma forma que não conversava com o meu corpo real, curvilíneo e rechonchudo.
Troquei minha mania de magreza por outras, por exemplo: construir mesas de madeira em formato de ameba. Quanto à obsessão física, ela mudou e agora é mais ou menos assim.
Massa, tenho um corpo.
Ele me leva pra lá e pra cá.
Vou gostar de ver as formas que ele vai ter nesta
vida.
E já tá valendo.
Recomendação
Só uma: esta edição da Segredos em Órbita, escrita pela Vanessa Guedes:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Ler seu texto foi importante pra mim, tenho sentido meu corpo mudar desde que entrei nos 30 e agora nos 36 anos sinto que o corpo está tomando o controle e me dizendo como devo viver. Sendo uma pessoa com intolerância a lactose desde nova, tive longos períodos da minha vida que não podia comer ou beber nada que tivesse leite. Depois tive um período onde minha alimentação mudou, parei de comer carne e o corpo começou a deixar entrar lactose, o primeiro pão de queijo que eu não comia há anos e só tinha lembrança de quando nova, foi incrível. Agora, passado alguns anos, meu corpo alertou que não está mais podendo com excesso de açucar e farinha, e claro, lactose entra junto no pacote. Tenho estado muito estressada e com muita azia, assim o corpo alertou e alertou. Eu obedeci e não obedeci. Sofri cólicas intestinais horríveis e muita privada. Meu corpo praticamente gritou: "aqui não entra!". Assim, inevitavelmente,me vi levando broncas do meu corpo e agora, sem poder escolher, sigo o caminho da paz da flora intestinal.
eu, que estava deixando quase todas as newsletters acumularem, fiquei com saudade da sua e abri essa última para ler antes de assistir uma palestra sobre o fim do capitalismo num evento de literatura. eu não sabia, mas precisava ler esse texto hoje. obrigada.
ps: e a surpresa de ver o meu texto linkado no fim? socorr
ow, universo