Afoot and light-hearted I take to the open road,
Healthy, free, the world before me,
The long brown path before me leading wherever I choose.
Henceforth I ask not good-fortune, I myself am good-fortune,
Henceforth I whimper no more, postpone no more, need nothing,
Done with indoor complaints, libraries, querulous criticisms,
Strong and content I travel the open road.
(Walt Whitman, Song of the Open Road)
Faço uma busca e o Google me devolve incerteza. Não posso te dar uma resposta só. Dharma - diz a Wikipedia - é uma palavra do sânscrito cujo significado varia. Numa das definições, diz-se que “com respeito ao seu significado espiritual, [dharma] pode ser considerado como o ‘Caminho para a Verdade Superior’".
Entre os muitos sentidos possíveis, decido ficar com este último por uma questão de gosto. Ele é perfeito para descrever o que esta palavra faz por mim: dharma é uma estrada cheia de tudo que não tenho a mínima ideia que vou encontrar mas na qual caminho alegremente. Descubro seu desenho à medida dos meus passos. Sei que a estrada é de todo mundo, mas o caminho é só meu.
Lembro de Canção da Estrada Aberta do Walt Whitman, um dos meus poemas preferidos.
Também lembro que adoro caminhar pelas cidades ou por trilhas, e de andar de bicicleta em lugares desconhecidos.
Sempre detestei viajar de carro. Gosto de enfiar meu corpo no perigo, de encostar naquilo que deseja esconder-se. Gosto da inexaustibilidade do Grande Mistério.
Isto tudo me dá mais vontade de escrever sobre o dharma hoje.
Meu pai tinha uma meia dúzia de livros de zen-budismo na estante da nossa casa de infância. Numa noite de frio destas que faz em Curitiba no inverno, deitamos na rede com meu irmão para ouvir historinha.
Eu tinha 8 anos.
Papai abriu o livro.
Na história, um monge zen bem velho conversava com um menino. Eles pegavam um bote e saíam remando por um lago no Japão.
Pedi pro papai parar. Queria muito que ele fechasse o livro rápido e colocasse na estante. Ele obedeceu.
A vida do monge e do estudante era a vida verdadeira.
Eu, por outro lado, não tinha nenhum monge na vida, nenhum lago poético do Japão e ainda por cima tinha que assistir programas idiotas na tv da nossa casa na periferia de Curitiba.
Tudo aquilo me deu uma tristeza imensa.
A vida que eu levava era artificial e errada, faltava-me esperança.
O melhor que eu podia fazer era fechar o livro e tentar ver algum sentido no que eu tinha, mesmo sabendo do fundo do coração que a vida que eu queria era outra.
Isso foi há muitos anos.
A intuição de que eu desejava a historinha zen nunca desapareceu, apesar de ir ficando meio esquecida embaixo da pilha de louça suja chamada vida enquanto meu corpo virava o de uma mulher adulta.
Vinte cinco anos depois daquela noite na biblioteca, escutei um homem num telão dando boa noite para os participantes de um retiro. Era a primeira vez que eu via aquele homem, era a primeira vez que eu participava de um retiro de meditação.
Antes mesmo daquele senhor negro e barbudo dar os primeiros ensinamentos, antes mesmo de falar do que o retiro se tratava, quando ele ainda dava as boas-vindas – naquele momento me veio uma taquicardia que era como se o corpo fosse explodir.
Tudo ficou fora do ar feito uma tela de tevê que pifou, o homem desapareceu, o sofá laranja onde eu sentava também, e o que restou mesmo foi só a voz do homem falando claramente no Grande Vácuo onde meu corpo era tão fino que quase não existia.
A linguagem dele me entrava cristalina, e naquele momento eu soube
- isto que este homem está dizendo é verdade e é o que chamam de dharma.
Ninguém me preparou para aquele encontro e depois que aconteceu fiquei assustada. O susto passou, e até hoje sinto uma felicidade tangível por ter encontrado alguém capaz de traduzir a minha vontade infantil incompreensível para uma linguagem que eu conseguia entender.
Antes dele, tentei uma porção de coisas boas. Tentei análise lacaniana duas vezes por semana por uns quatro anos, yoga e mesmo a via de uma carreira estável e bem remunerada.
Somos todos diferentes, por isso não duvido que estas escolhas possam trazer felicidade para muita gente. Mas elas sempre me faziam sentir algo do tipo
sei lá, não é bem isso.
Depois que o dharma entrou na minha vida, parei de precisar de respostas.
Tudo que eu queria era mergulhar nelas.
Fiz uma lista do que eu queria fazer até morrer:
- praticar o dharma
- escrever
- pintar
Uma vez meu professor perguntou qual dos seus ensinamentos eu sentia que tinha absorvido completamente.
Queria dizer-lhe que tinha encontrado o sentido da vida, mas não era verdade.
O ensinamento mais profundo que encontrei na minha experiência é o de que depois que ele traduziu o dharma pra mim, nunca mais me senti perdida.
Comecei a fazer viagens para encontrar meu professor e praticar o que ele estava falando. Foi maravilhoso, até me mudei por um par de anos para o ashram que ele criou.
O dharma foi crescendo dentro de mim e se estendeu para além da minha a relação com o professor. Encontrei outros professores de diferentes tradições contemplativas e apesar de não conhecer os textos escriturais aos quais se referiam ao ensinar, conseguia entender o que eles estavam falando.
Tenho muita alegria de dizer que uma grande parte destes professores eram mulheres.
Cada um encontra o seu jeito de se relacionar com o cosmos, incluindo os agnósticos e ateus. Há católicos, muçulmanos, umbandistas, xamanistas, prostestantes, evangélicos. Não posso falar de outras tradições, por isso aproveito para fazer uma nota de esclarecimento. Escrevo aqui a partir das minhas práticas na tradição védica não-dualista e no budismo tibetano.
A Patti Smith escreveu um livro que chama Devotion. Mary Oliver, a poeta norte-americana, também tem um livro com o mesmo título, só que no plural - Devotions.
Adoro a palavra devoção. Ela tem um elemento espiritual. Paro um segundo e faço uma lista das coisas pelas quais tenho devoção, começando pelos meus gatos e pelo Dune, o livro de ficção do Frank Herbert.
Você tem devoção pelo quê?
Existe um dizer famoso do Buda que é algo como você deve ser o próprio mestre, você deve ser o mestre de si mesmo.
Já pensei muito nesta mensagem até concluir que ela não descarta a presença de professores no meu destino.
O que é que estes professores fazem por mim?
Eles traduzem o dharma para uma língua que eu consigo entender.
Passada uma década desde que encontrei meu professor, dou-me conta neste janeiro de 2024 que todo este tempo de prática espiritual tem sido um exercício de tradução.
Traduzir a ideia de meditação para a prática no colchãozinho. Ao traduzir, construir minha própria versão: a meditação se transforma em minha, as resistências e as descobertas também. Ao terminar a sessão de silêncio, volto aos ensinamentos escritos e confirmo que já estava tudo lá, na tradução de alguém com outro corpo que viveu anos ou décadas ou séculos ou até mesmo milênios antes de mim.
Uma linha nos une, e ao longo dela temos a chance de baixar as palavras para o domínio do próprio corpo e devolver nossos palavras para outros que desejem traduzir do seu jeito.
Traduzir a vida que eu tive no ashram para a mesa do café da manhã. Meu marido de cueca com um eterno roupão azul marinho, a gata pulando na pia enquanto o outro gato tenta achar um jeito de abrir a porta. O Buda esperando na xícara de chá. A preguiça de descer para meditar. A preguiça de acordar. Recebo a mensagem dizendo que uma amiga da mesma idade que a minha morreu um pouco antes da virada do ano. Outra, cinco anos mais nova, está vendo os órgãos consumidos por um câncer terminal.
O Buda no café com leite. Você já pensou que tudo é impermanente? Mesmo este café da manhã. Mesmo o marido com o roupão. Tudo que a gente tem é essa torrada e este gato pulando. Tudo que a gente tem é mesmo o caminho, e o caminho é lindo e é uma zona.
O gato miando para sair. Abro a porta. Faz um dia lindo de inverno do lado de fora.
Tradutores do dharma
Dzongshar Khyentse Rinpoche é um professor tibetano-butanês, cineasta, artista e escritor. Quero dizer que sou obcecada por ele há algum tempo já que ele tem os pés enfiados tanto na arte quanto no dharma. Alguns dos seus livros foram traduzidos para o português - em particular, recomendo O que não faz de você budista.
Aprecie impermanência e reflita sobre a importância de pensar na morte com Khandro Rinpoche (tradução em português disponível).
A maravilhosa lama Tsultrim Allione nos ajuda a recolocar do lugar do feminino dentro da tradição budista.
Tenzin Palmo, luz da minha vida.
No Brasil, sempre estou prestando atenção nos passos da Márcia Baja.
Janeiro no Sofá
No mês de janeiro, todas as edições do Sofá da Surina estão rolando em torno do tema Tradução. Na primeira semana escolhi traduzir meditação, esta palavra cheia de ideias e modismos, para uma linguagem que vem da minha experiência.
Esta semana eu falo sobre Dharma e trago um punhado de professores contemporâneos que eu amo porque traduzem os ensinamentos espirituais de um jeito que dá para entender.
Por fim, na última edição do mês, vou falar de um tema que acho muito interessante e sobre qual tenho contemplado muito ultimamente aqui nas minhas práticas – preparem-se para uma edição do Sofá sobre Inferno.
Ah! E que vocês sejam felizes sempre. Até a próxima,
Querida, seria possível divulgar o nome do seu professor? Estou na busca e sempre bom ter novas direções possíveis. Obrigada!
Fiquei pensando que outra tradução possível para o dharma é propósito, que também se busca muito e que pode ser mais simples!