#76. Diários de Bir: o coração genuíno da tristeza
Rio Grande do Sul & Índia. Ecologia & compaixão
Tenho certeza que já nasci budista, ou pelo menos gosto de pensar assim.
Não recebi minha tradição por herança familiar. Aos meus pais cientistas faltava a firmeza da religião, que no caso da nossa família era substituída por um outro tipo de devoção, mais livre e poética: meus pais amam a Natureza.
Papai é botânico; nasci no Pará durante o seu mestrado em ecologia. Ele estudava o ciclo de regeneração dos solos na floresta amazônica. Quando terminou os estudos e voltamos para Curitiba, fomos morar numa casa no meio do mato, quase sem vizinhos.
Naquela casa, meus pais me ensinaram a viver com os sapos, as aranhas e as cobras. A Natureza era o centro unificador da nossa vida e a perfeição dos ciclos naturais era a prova orgânica da existência divina, que mamãe me explicava do seu jeito: Deus é a bondade cósmica traduzida na abundância das bromélias e dos anjos da guarda, dos espíritos e das formigas, no coração de Jesus e no das orquídeas, na inteligência do Preto Velho e do Tranca-Rua. A natureza é como o universo. Tudo é possível.
Numa noite de chuva fria bem curitibana, meu pai tirou um livro fino de capa branca da estante e nos deitou na rede para contar uma historinha. Nos primeiros dois minutos, meu irmão dormiu o sonho dos aquarianos despreocupados. Eu, por outro lado, ouvi quieta e entendi, no fim da história, que a minha vida era uma mentira.
A vida verdadeira, eu tinha acabado de descobrir, era a do homem do livro. Era a vida dele que eu queria viver.
Eu tinha cinco anos e aquela historinha foi a primeira vez que ouvi falar do Buda.
Estou em Bir, um vilarejo no norte da Índia onde passo seis semanas recebendo ensinamentos e escrevendo. É primavera, o verde está mais fresco e as rosas selvagens em arbustos enormes dão a impressão de que a cidade é toda branca.
Entre uma sessão e outra, caminho de volta para o quarto e olho os Himalaias nevados pela janela. Sento na cama e ligo o computador no YouTube. A água marrom não tem cheiro pela tela do computador, o grande rio urbano é abstrato e até bonito. Os barcos deslizando onde antes havia rua, os postes submersos pela metade. O Rio Grande do Sul está distante daqui.
Até que vem o gato.
Um gato branco molhado escala as grades da casa miando seus gritos. O vídeo corta, depois começa de novo com um homem de roupa laranja arrombando a porta. Há quanto tempo o bicho está preso? Há quantos dias sem comer? Que tipo de medo incompreensível este gato sentiu ao ver a água subindo?
O homem caminha na direção da câmera com o bichano ensopado no colo. Corta. O homem trazendo mais seis gatos que continuavam dentro. A natureza violada é a ruptura da divina ordem cósmica que meus pais me ensinaram a amar.
É assim que me dou conta da tragédia.
Um aperto no coração. É assim que a gente diz: sinto um aperto no coração, uma descrição precisa porque a sensação física da tristeza genuína contrai o peito e nos devolve a impressão de que aquela parte está em carne viva, vulnerável e sem proteção.
Acho que muitos de nós estamos sentindo isto diante da situação no Rio Grande do Sul – e mais um monte de coisa, claro. Revolta, raiva, desespero, ansiedade, medo, o pacote todo que a Aline Valek descreveu muito perfeitamente na última edição da sua newsletter.
Volto para a tristeza e sobre como lidar com isso agora. Muitos ensinamentos budistas falam dela, desta tristeza que surge quando olhamos o sofrimento.
A compaixão é o amor que deseja que o outro pare de sentir dor, por isso é assim: se há compaixão é porque há sofrimento. E quando encontramos o sofrimento, temos que lidar com o coração exposto.
Por isso, nas tradições do budismo que enfatizam a compaixão, sentir esse aperto no peito é um sinal auspicioso, embora não seja fácil. É um aviso que nos lembra que ainda somos capazes de sentir. E de que estamos nas imediações da compaixão.
Em vez de rejeitar ou de nadar na lama, trazer a tristeza para o caminho com sabedoria, então.
Gosto muito desta passagem do livro do Chogyam Trungpa Rinpoche:
“The genuine heart of sadness comes from feeling that your nonexistent heart is full. You would like to spill your heart’s blood, give your heart to others. (…) This experience of a sad and tender heart is what gives birth to fearlessness. Conventionally, being fearless means that you are not afraid or that, if someone hits you, you hit them back. However, we are not talking about that street-fighter level of fearlessness. Real fearlessness is the product of tenderness. It comes from letting the world tickle your heart, your raw and beautiful heart. You are willing to open up, without resistance or shyness, and face the world. You are willing to share your heart with others.” (Chogyam Trungpa, Shambhala: the Sacred Path of the Warrior. pp. 33,34)
Na última edição da sua Newsletter, o Rodrigo Casarin falou rapidamente sobre a importância da imaginação para reconstruirmos as dinâmicas humanas em tempos de aquecimento global.
A Ana Rüsche criou e conduz o projeto Filamentos, um espaço de reflexão a respeito da mudança climática e suas intersecções com a escrita e a literatura.
Semana passada, a Vanessa Guedes juntou um time lindo e organizou um aulão de escrita criativa para arrecadar fundos para o Rio Grande do Sul.
Tentamos um jeito de existir no meio deste desconhecido.
Minha reação à evidência da mudança climática é procurar refúgio no invisível e trazer notícias de lá.
Quando era pequena, fiquei fascinada pelo budismo mas sentia medo de acabar me transformando numa criatura de pedra, fria e sem coração como uma estátua do Buda de olhos fechados. Depois daquele dia na rede da casa da infância, tive que esperar trinta anos para ter coragem de me aproximar dos ensinamentos.
Hoje em dia o Buda me traz a sensação de refúgio. É porque no mesmo ensinamento em que ele explica que o sofrimento é o que nos cerca, ele também anuncia que existe uma saída. Imagina se ele só anunciasse a desgraça da inevitabilidade da dor?
Em tempos incertos como os nossos, acho importante lembrar que há uma saída. Em tempos como os nossos, é fácil achar que não há.
Que saída é esta? Pergunto para os grandes professores e para alguns monges mais experientes; eles me respondem com uma risada. É uma risada sem escárnio. Eles entenderam algo, o Buda entendeu algo. Este é o meu horizonte. A risada sem escárnio.
Acho que a porta de saída inclui a tristeza compassiva. Atravessaremos a saída de emergência caminhando de coração aberto numa linha feita de barbante. Atravessaremos para fora das fronteiras do samsara sabendo que não há nada a proteger, nenhuma rede de segurança para nos separar do outro. O fim do sofrimento é um lugar onde é possível sentir as aflições e a alegria - nossas e alheias - sem sermos vencidos por elas.
Essa é a notícia que o invisível me dá quando penso nesta tragédia: a possibilidade de estar completamente em contato com os altos e baixos do mundo - e das emoções - sem ser esmagada por eles.
O Buda diz: no coração de todas as pessoas
mora um Buda
também.
Enquanto o refúgio dentro do meu coração está sendo construído, continuo vindo à Índia em busca de abrigo.
A estátua do Buda no templo aceita todos que entram.
Nas ruas de Bir, as rosas selvagens ficam abertas por mais um tempo, até a primavera
terminar.
Lançamento do livro novo & nova edição d’O mundo sem anéis
Boas notícias: meu livro novo, o romance autobiográfico 108, vai ser lançado no Brasil este setembro em Brasília, Curitiba, Florianópolis e São Paulo. Já temos datas para algumas cidades, anotem aí:
Brasília: Circulares Livros, 28 de setembro
Curitiba: Livraria Telaranha, 19 de setembro
A outra novidade é que meu primeiro livro, O mundo sem anéis, vai ganhar uma segunda edição - finalmente o livro físico vai estar de volta! O mundo é o diário da viagem de bicicleta que fiz sozinha por três meses e está esgotado há mais de cinco anos. Atualmente este só está disponível em formato Kindle pelo site da Amazon, e muita gente escreve até hoje pedindo uma nova edição. Como sou minha própria editora - ele foi publicado de forma independente pelo selo Longe -, achei que era hora de trazê-lo de volta para o catálogo!
Mais livros
O livro da Gaía Passareli está em pré-venda! A Gaía é autora da Newsletter Tá Todo Mundo Tentando, e o livro de mesmo título é uma seleção de crônicas “que atravessa temas comuns às metrópoles. Enquanto nos leva para conhecer o mundo, de Salvador a São Francisco, a autora apresenta um lar que, no frenesi da cidade, ainda oferece momentos de introspecção.” Adoro a Newsletter da Gaía e quero muito dar este livro de presente para alguns amigos. Bora? Na pré-venda o livro vem com desconto!
Os livros do Chogyam Trungpa foram lançados no Brasil pela Cultrix, um selo da editora Pensamento. O Shambala, meu preferido (ei, alguém aí de editora afim de relançar?), mas você pode encontrar outros livros dele por lá.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Obrigada por esse texto tão lindo e generoso. Estarei de olho no lançamento em Floripa para te prestigiar. Um abraço carinhoso.
Eita, 28 de setembro tenho compromisso lá na Circulares :)