Se eu morresse hoje
- as chances são maiores tendo que atravessar a rua todo dia em meio ao trânsito da Índia -
se eu morresse hoje, passaria desta vida para a próxima com um desejo a menos porque ontem participei da exposição de arte dos meus sonhos.
A imaginação é uma faculdade humana maravilhosa, mas ela não foi capaz de desenhar um cenário tão absurdo como o que experimentei durante a primeira vez que expus as minhas obras, um corpo de trabalho que nos últimos meses venho classificando sob o guarda-chuva de dharma art.
Peço desculpas sinceras pelo uso da nomenclatura em inglês, mas é que ainda não achei uma em português que soasse bem (aceito sugestões).
Quando chamo minhas ilustrações de dharma art, quero dizer que são representações criadas a partir do meu principal objeto de investigação nos últimos anos, que é o dharma, a vida contemplativa, a face mágica da existência, a transcendência possível no samsarão, os ensinamentos espirituais que me são tão caros há uma década.
Um pouco como os textos que escrevo nesta Newsletter que você está lendo.
Mas deixa eu falar da exposição.
Para começar, ela rolou num monastério tibetano. Não só isso: o monastério fica em Bodhgaya, a cidade onde o Buda se iluminou, bem perto da boddhi tree.
Dias antes da abertura, espalharam placas pela cidade anunciando o evento – a primeira, na frente do monastério. A segunda, na frente dos portões que guardam a árvore sagrada.
Cheguei na Índia bem antes da data de abertura e passei dois dias ajudando a montar a exposição com uma artista indiana que tinha acabado de voltar do Brasil. Pelo que entendi, tinha participado da Bienal de São Paulo.
No nosso primeiro dia de trabalho, ficamos até duas da manhã arranjando as obras, pendurando, decidindo como seria a disposição na parede para valorizar ao máximo o trabalho de cada artista. Já era tarde quando acabamos o dia, perigoso voltar pra casa, então dormimos no jardim do monastério, em cima de um tapete. No segundo dia, terminamos de criar o layout para cada um dos 16 artistas e penduramos as pinturas nas paredes de uma tenda aberta ao lado do templo - a sala de exposição ao ar livre.
Minhas seis obras ficaram na primeira parede, lindamente arranjadas em linha em sequência assimétrica. Nunca as tinha visto assim, numa disposição pensada propositalmente para dar-lhes dignidade, lado a lado, em molduras grandes.
Acostumei-me a enxergar as ilustrações voando de pijama pelo atelier.
A parede da exposição foi a mais bonita que eu já vi.
Na noite da abertura, tudo era vermelho e dourado. Os convidados se espalhavam pelo pátio do templo dividindo o espaço com uma estátua do Buda iluminada por uma lâmpada cor de sangue. O templo é um edifício todo adornado em motivos tibetanos com a dupla de cores; o público de mais ou menos quatrocentas pessoas era formado por tibetanos vestidos em roupas brilhosas de cetim, ocidentais meio hippies e
monges, claro. Monjas e monges da tradição do budismo tibetano cobertos pelas vestimentas cor de vinho, afinal de contas era uma exposição de arte budista acontecendo na casa deles.
Enquanto esperávamos o Rinpoche, que faria a fala inicial, snacks tipo street food rolavam soltos: samosa - um tipo de pastel frito recheado com batata picante -, chai para beber e de sobremesa uma bolota brilhante de gulab jamun boiando numa cauda de puro açúcar com gosto de cardamomo.
Misturada ao cheiro do samosa fritando na frigideira improvisada aos fundos, a fumaça grossa de incenso subia aos céus, aquela gente toda conversando, velas queimando por todo canto, o Rinpoche chegando ao topo da escada do templo para se dirigir à multidão
- Tenho pouco para falar.
É verdade, mas apesar de pouco o lama disse algumas palavras. É difícil reproduzir as falas de um professor, por isso perdoem-me as distorções da memória curta.
Ele disse: não existe uma palavra em tibetano para ‘arte’; o mais próximo é algo tipo ‘fingimento’.
Arte é uma forma de fingir algo, de performar um tipo de realidade que surge ao artista, foi o que entendi.
Os ensinamentos espirituais não são a verdade, e sim um meio habilidoso que o professor usa para transmitir o conhecimento profundo da existência que o estudante só poderá experimentar no próprio corpo.
Do mesmo jeito, as pinturas na exposição não são um olhar definitivo do artista sobre o Buda. Mas elas são, sim, uma representação visual que tira o Buda de um espaço abstrato e lhe oferece contornos. Estes contornos dão à pessoa que vê a possibilidade de construir uma imagem do Buda dentro de si.
Depois do vídeo, a multidão passou à exposição. Devia haver umas 400 ou 500 pessoas.
Como não conhecia muita gente, fiquei ali. Não tinha com quem conversar, então fiquei perto das minhas obras feito estátua, observando a reação de quem passava. Era uma atividade muito interessante.
Vi quando um lama famoso que está de visita a Bodhgaya
- o esplendoroso Chokyi Nima Rinpoche -
, vi quando ele passou pelas minhas obras e as observou de relance. Os olhos de Chokyi Nima encontraram minhas singelas pinturas.
E os monges? O que será que eles pensaram vendo o “Buda na bicicleta” ou a minha Buda num corpo feminino tomando café num vestido vermelho? Não sei o que pensaram, talvez não tenham pensado
nada. Monges passam a vida treinando a mente para não perder tempo fixados em rancores, conceitos ou outras bobagens.
De longe, não me pareceram incomodados. Ao contrário, fiquei impressionada com as risadas que eles davam diante das minhas pinturas com caveira. Algumas pessoas já expressaram desconforto ao vê-las, mas os monges, não.
Os monges me pareceram muito à vontade diante da morte.
Escrever é uma prática devocional quase impossível: escrevo com a minha solidão, horas e horas por dia, e nunca estou presente quando os leitores encontram meus textos.
Não sei, por exemplo, como você reage ao ler estas palavras. Talvez não esteja prestando muita atenção. Talvez esteja cansado, ou talvez você leia a edição de hoje com toda presença possível. Não sei. Só posso mesmo contar com a sua compaixão ao encontrar o texto.
Na abertura da exposição, por outro lado, dava para ver a reação das pessoas diante das obras. Sendo anônima entre o público – ninguém conhece o meu rosto –, pude exercer o auto-criado direito ao ilimitado voyeurismo e este, também, é um desejo a menos para carregar para a próxima vida.
Por último, quero fazer uma observação que ainda é pertinente.
Quando tinha 22 anos, ganhei uma bolsa de estudos e passei um ano em Nova York estudando fotografia e artes visuais. Muito das minhas referências sobre composição e uso das cores vem daquele tempo, uma época mesmo antiga em que usávamos filme e fazíamos prática de laboratório.
Criei como uma louca naquele ano, especialmente porque sabia que não teria luxo fácil nem dinheiro para continuar nos Estados Unidos ou voltar pra lá depois que a bolsa acabasse. Criei muito e sofri mais ainda. A escola era um campo de possibilidades ao mesmo tempo que um ambiente cheio de comparações e cânones artísticos nos quais tentava me encaixar sem nunca conseguir direito. O que era linguagem artístuca própria e o que era minha vontade de agradar?
Nunca consegui entender, fiz uma pausa longa e só voltei às artes visuais mais de uma década depois.
Vinte anos passaram e estou em Bodhgaya, numa exposição de arte budista.
O que realmente, é uma exposição de arte budista? Claro - é uma exposição cujo centro gravitacional é o Buda, suas imagens e representações. Mas há também um outro aspecto, que é a infusão do dharma na exposição. Ou seja: a própria exposição é um ensinamento.
Não estamos aqui para engrandecer o ego do artista. Diferente do que acontecia na minha escola americana, os papos de corredor, a organização, o texto que abre a exposição e aqueles que acompanham as peças não têm como centro gravitacional o artistas. Os autores das obras são valorizados, claro, mas o centro das atenções é o Buda.
Além disso, criar obras, montar a exposição de arte budista, trabalhar nela - todas as etapas convidam a nossa presença num certo estado relaxado de mente, sem comparações, sem disputas nem fixações.
Tenho muito para pensar sobre estes assuntos. Quando um dia estiverem mais elaborados em mim, talvez escreva sobre isto.
Por enquanto, concluo dizendo que de um jeito ou de outro
radiante sob a lâmpada vermelha
o Buda está aqui em Bodhgaya comigo.
Notinhas
Boa notícia: todas as minhas obras que estavam na exposição foram compradas de uma só vez por um casal de colecionadores de arte da África do Sul (!).
A edição de hoje foi ilustrada com as peças que estou expondo aqui.
Queria muito indicar textos de outros autores esta semana, mas uma dor de barriga me impede de continuar. As recomendações vão ficar para a semana que vem.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Este é o segundo texto que leio seu e estou verdadeiramente encantado com sua escrita e sua arte. Grato por compartilhar tanta beleza em se tecendo de cores delicadas e entregues com carinho aos que aqui estão sendo, ainda que breve, como a vida, instantes: no fino olhar daquele que vê, o olhar já passou sem dizer tchau como se a vida também ela um pequeno fósforo ou uma onda no mar...
Que lindo tudo isso! Gostei bastante da tentativa em traduzir a palavra “arte”. Como li o último texto antes desse, o “fingimento” me remeteu à realidade ser projeção da mente. Enfim, to aqui pirando nessas duas coisas. Hahaha e parabéns pela venda das obras. To aqui sonhando em ter uma obra sua na minha parede. Ainda compro uma :) beijos