Sentada num café na minúscula vila de Sansol, me espremo num canto onde bate luz solar. Tenho o caderninho e o copo de suco de laranja na mesa de madeira. Estou aqui há três horas.
Antes do suco, tomei dois cafés com leite e um croissant. Fui uma das primeiras a chegar. Olhei no relógio de pulso quando pus os pés aqui: 8:19. Um grupo grande de caminhantes chegou em seguida. Pediram chá, suco de laranja, croissant de chocolate, foram embora. O café ficou vazio de novo.
Olho para o relógio de pulso: 8:57.
Duas mulheres lindas entram de mochila. Têm por volta dos 60 anos. A de cabelo curto é inglesa e cara de quem foi punk. Adoro as mulheres que fazem o caminho sozinhas ou acompanhadas de outras mulheres. Elas tomam café preto. Meu marido diz que vai ligar pra saber se estou melhor. Olho para o relógio de pulso: 10:22.
Espero.
A ligação não vem e agora sei que não virá até as 2. Olho para o relógio: 10:53. As meninas espanholas alternam descanso com trabalho no balcão. As máquina de café a toda.
Ciclistas entram e saem.
Caminhantes vêm e vão.
A porta do banheiro abrindo e fechando.
Tudo passa, só uma coisa permanece igual
: o meu braço, que se estica na direção do porta-guardanapos. Tiro dois. Levo o par ao nariz, expulso o catarro. Amasso os dois guardanapos molhados e coloco no bolinho junto com os outros trezentos que vivem no meu bolso. Enquanto repito o gesto, vou pensando sobre o profundo mistério do corpo humano. Com tanta água saindo de mim, como é que ainda não morri de desidratação?
[Esse sofá aí em cima eu encontrei no terceiro dia de caminhada.]
A gente pode se preparar pra tudo, mas a vida é uma obra vanguardista em tempo real - está sempre um passo adiante das projeções da mente.
Não tive nenhuma bolha até agora. Nem lesão muscular. Na maior parte dos dias, sou das primeiras a chegar na próxima cidade. Minha mochila está inacreditavelmente leve.
Meu nariz, por outro lado, é um chafariz.
No primeiro dia nevou enquanto eu atravessava os Pireneus. Era uma nevinha boba, mas pensando bem foi ali que me resfriei. Tive que esperar uma hora na recepção do imenso albergue de chegada e o suor ficou frio no corpo. Quando fizeram meu check-in em Roncesvalles, a verdade é que eu já não conseguia sentir os dedos das mãos.
No dia seguinte senti a garganta em Zubiri. A coisa foi se misturando com alergia ao pó e ao pólen. A vida continuou até que cheguei ontem - sexto dia - toda estropiada ao albergue em Los Arcos.
Mal conseguia andar. Meu rosto coçando e o nariz escorrendo.
Diante do desespero, tomei a única atitude sensata possível: entrei no saco de dormir verde e rosa.
Meu saco é o lugar estável que permanece comigo. É um objeto muito importante. Entrar nele equivale a voltar pra uma espécie de casa interna onde me sinto protegida.
Meu saco é colo de mãe + quentinho + casa + lugar conhecido. É uma ilusão de segurança que aceito para poder encarar as turbulência do samsara desta viagem.
À noite, rezei: 1) para não atrapalhar meus vizinhos de beliche com as assoadas noturnas; 2) para conseguir respirar pelo nariz e poupar a garganta; 3) para acordar melhor.
Dentro do saco de dormir, todas as estas preces foram atendidas.
Este texto está sendo escrito no celular enquanto repouso dentro do saco de dormir e copio as notas que escrevi no meu caderninho de viagem. Por favor, tenham paciência com erros de ortografia e edição.
As preces não costumam falhar, mas é prudente não abusar da bondade divina. Apesar de melhor, achei que seria estúpido sair andando cinco horas no frio logo depois de pegar um resfriado.
No dia seguinte, caminhei sete quilômetros por uma questão de princípio. Escolhi alguns para esta viagem: caminhar todos os dias, carregar minha própria mochila e fazer todas as etapas a pé. Nunca tenho certeza se vou terminar a viagem ou não, mas estas são as condições auto-impostas da minha peregrinação. Chegando à vila de Sansol, vi uma placa maravilhosa pregada num antigo muro de pedra:
ALBERGUE KARMA
Decidi ficar.
Aprendi a dizer “bolha” em: espanhol, inglês, francês, finlandês e italiano.
“Se pudesse dar um conselho só pra quem caminha, o que você diria?”, perguntei para o proprietário do albergue Karma. Ele passou muitos anos tratando lesões de peregrinos. “Beba 3.5 litros de água por dia”, foi a resposta.
Ele diz que a água mantém a elasticidade do corpo, prevenindo todo tipo de lesão.
Outra pergunta: “Por que eu não tenho bolha se todo mundo tem?” Resposta: “Porque você é sortuda.” E emendou: “Cada pé é diferente”.
No meu quarto do albergue Karma tem um quadro com a foto do John Lennon e um trecho de “Imagine”.
Duas coisas que eu queria ter trazido: ipod & um casaco mais quente.
Fazer o Caminho a pé é diferente de fazer de bicicleta. Tenho a sensação de que não conhecia este percurso, apesar de já te-lo percorrido há 10 anos. Cada veículo é um mundo. Talvez meu mundo interno seja diferente daquele que eu habitava uma década atrás.
Melhor objeto da mochila: saco de dormir.
Outro melhor objeto da mochila: Kindle.
Estou lendo “Dune”, o clássico da ficção científica. É o livro mais maravilhoso do mundo porque transforma a magia do Camino numa viagem cósmico-psicodélica. Todas as noites meu saco vira uma nave espacial.
Enquanto escrevo, sinto nascerem na parte superior dos meus lábios os descendentes diretos desta semana de frio, resfriado, alergia e baixa imunidade. Três herpes serão meus companheiros nos dias que estão para começar, adicionando novos níveis à minha condição de não-gatinha.
Notinha final
Deixo vocês com “Litania do Medo”, uma espécie de mantra que atravessa todo o primeiro volume de “Dune”.
“Não temerei.
O medo é o assassino da mente. Medo é a morte pequena que traz a obliteração completa.
Enfrentarei meu medo.
Permitirei que ele passe sobre e através de mim.
E, quando tiver partido, voltarei meu olho interno na direção do seu rastro.
Por onde o medo passou, nada terá restado.
Apenas eu permaneço.”
* Tradução livre. A versão em inglês está aqui:
I must not fear.
Fear is the mind-killer.
Fear is the little-death that brings total obliteration.
I will face my fear.
I will permit it to pass over me and through me.
And when it has gone past, I will turn the inner eye to see its path.
Where the fear has gone there will be nothing. Only I will remain.
Mandem notícias, contém algo bem bonito, deixei seus comentários pra me fazer companhia.
*O Sofá da Surina é uma Newsletter que chega aos sábados de manhã, três vezes por mês. O último sábado é dia de descanso do Sofá, mas este mês vai ser diferente. Semana que vem eu continuo por aqui com a semana 2 dos Diários do Caminho.
Ah!, e que vocês sejam felizes sempre. Até a próxima,
#37. Diários do Caminho, semana 1
Conectadas no nariz de chafariz! Melhoras pra nós!!!
Que linda tua nave espacial nas cores da Mangueira! Bom, amo “Duna”. Nas notas aleatórias, aprendi a dizer “bolha” em italiano e tb devia ter trazido um casaco mais quente. Logo vc fica ótima. Bom Caminho!