Neste momento tenho dois problemas: preciso desesperadamente de um banheiro e começo a ter dor na canela direita.
Não seriam problemas merecedores de um texto, mas hoje são, porque acontecem aqui. Estou numa estrada cercada de plantações de trigo sem um arbusto sequer e com um monte de caminhantes que segue numa procissão interminável de mochilas coloridas.A próxima cidade, Santo Domingo de La Calzada, fica a 8km.
O que fazer? Sei lá. Mas não tenho medo. A litania do Dune é perfeita - fear is the mind killer. Na falta do pânico, sobra espaço para a mente criar soluções.
A voz interna responde. “OK, um problema de cada vez. Antes de tudo, vamos cuidar do banheiro. Depois a gente vê o que faz com o tornozelo”.
Aqui na foto, o tipo de paisagem que leva a Santo Domingo de la Calzada.
Primeiro problema resolvido pela sorte. O clube de golfe tem um banheiro reluzente e um café cheio de comidinhas lindas. Através das janelas enormes, vejo os homens de camisa polo no gramado bem aparado tentando acertar a bolinha ou andando pra cima e pra baixo de carrinho elétrico.
Dali, sigo para São Domingo mancando por uma hora e meia. No começo do dia era um incômodo no peito do pé. 16km depois, o desconforto virou dor que virou agulhada que virou tanta que a parte de baixo da perna direita anestesiou. Na estrada, eu paro, começo, paro, começo.
Acostumada a ser a primeira, hoje sou a última do pelotão.
Os velhinhos, os machucados, os de mochila imensa que vão no estável ritmo tartaruga, os jovens de ressaca e os que saíram atrasados. Todos me ultrapassam.
Caminho sozinha com a minha dor sem outros seres humanos visíveis à frente ou às costas
bem
devagar.
A barra da calça levantada no albergue de Santo Domingo de la Calzada duas horas depois me apresenta o diagnóstico
: tornozelo do tamanho de uma melancia.
A população peregrina à minha volta tem respostas. “Coloca gelo”. “Alterna compressa quente com fria”. “Faz massagem”. “Enrola com fita adesiva”. “Coloca o pé pra cima”. “Passa na emergência do hospital”. “Põe tornozeleira pra dar suporte”. “Uma palmilha ortopédica me salvou”. “Descansa”. “Toma anti-inflamatório”. “Tenho um creme ótimo aqui - quer?”
Não, obrigada. Só quero um prato de sopa.
Está frio e não aguento mais pão com coisa dentro.
Conversa telefônica com a amiga fisioterapeuta:
- A lesão é grande?
- A canela tá gigante.
- Difícil saber se é grave sem ver, querida…
O albergue de peregrinos oferece uma visão inconfundível. Gente dormindo às quatro da tarde enquanto outros planejam no caderninho as etapas seguintes.
Deitada com as pernas pro alto, avalio possibilidades. Pegar um ônibus, mas acho deprê. Mandar a mochila pra cidade seguinte por um serviço de transporte - também deprê; quero caminhar até Santiago com as minhas coisas. Ficar um dia descansando aqui. Rezar. Pedir pros outros rezarem. Tentar fazer a caminhada de amanhã assim mesmo.
Durmo.
No dia seguinte, o tornozelo parece um pouco melhor. Faço 20km. E no outro, 27. Chegando em casa, aplico gelo no tornozelo, ponho os pés pra cima, faço massagem. É um ritual de sobrevivência.
Por enquanto, a dor não voltou.
Por enquanto.
Mamãe fez o Caminho de Santiago em 2014 como uma gazela. Tinha 61 anos, levou a mochila por 34 dias e nunca reclamou.
- Só dói na primeira semana, até o corpo se acostumar. Depois passa.
Em Santo Domingo, dia 9, tive um insight enquanto comia um croissant+ café com leite: não vai passar.
Não vai passar. A constatação me acalmou; parei de esperar. Meu caminho é diferente do caminho da mamãe. Todos os dias acordo com dor numa parte diferente do corpo, a maior parte das vezes na perna. É uma dor que vai rodando. Músculos da batata, pés, pescoço.
Quando a perna melhora, começa a doer o ombro. Quando o ombro melhora, vem a cólica. Quando a cólica passa, uma aranha me morde a coxa.
Eu caminho através da minha dor.
Uma vez, quando morava no ashram, me aconteceu um desentendimento terrível com um colega. Fui tomada por um ódio profundo. À noite, na fila do refeitório, escutei o menino da frente falando uma coisa besta e comecei a rir.
Fiquei surpresa por descobrir que no meio daquele ódio havia uma parte minha que não estava afetada e inclusive era capaz de dar risada.
É mais ou menos assim que eu caminho através da minha dor.
Não apenas visão: o cheiro de todo quarto de albergue ao longo do Caminho de Santiago é o mesmo. É cheiro de gelol em suas muitas manifestações.
Cânfora com mentol. Em torno da pomada mágica, um purgatório com feridos de toda sorte. O time das Terríveis Bolhas tem os pés cheios de curativos e anda de sandália. O Time da Gripe tosse sem parar. Tem a Equipe do Joelho Enfaixado. Há os Unidos do Tendão Ruim (tipo eu) e os mais moderninhos, que enfaixam a área lesionada com fitas adesivas coloridas de uso fisioterapêutico que acho lindas mas não tenho a mínima ideia de para que servem.
Uma força comum nos une. Somos os estropiados do Caminho. No dia 11, confesso que somos a imensa maioria.
Aquele ânimo indestrutível do dia 1 acabou. Aquela sensação de “olha como a minha mochila é mais leve que a sua”, também.
Sabemos que não dá pra saber do amanhã, mas caminhamos assim mesmo. Aprendemos a andar mais devagar. A confiar no mistério - se eu chegar a Santiago.
A dor me revelou:
- que sou muito forte fisicamente
- que se não tiver cuidado me machuco
- que existe uma linha dividindo dor e martírio, e que ela não é a mesma pra todo mundo
No quilômetro 19 da saída de Santo Domingo, no dia seguinte, encontro uma mulher caminhando de sandálias e meias
- É bolha?
Ela faz que sim.
- Posso ajudar com alguma coisa?
Ela diz que tá tudo bem.
Vi de relance os pés dela ontem: carne viva.
Ultrapasso e continuo, “até já; força!” Em dois minutos já estou numa igreja, enquanto ela caminha atrás de mim
bem
devagar.
Esse grafite aqui da foto foi um que eu gostei.
Notinha
Este texto está sendo escrito no celular enquanto repouso dentro do saco de dormir e copio as notas que escrevi no meu caderninho de viagem. Por favor, tenham paciência com erros de ortografia e edição.
Ah!, e que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
eu era do time das bolhas quando fiz o caminho e vou fazer uma confissão: agradecia todos os dias por carregar *apenas* bolhas.
eu olhava para as dores dos outros e pensava que eu poderia muito bem ter todas elas, mas tinha apenas as bolhas e as bolhas eram uma coisa que eu conhecia.
eu fiz um percurso de apenas 13 dias caminhando e tô te acompanhando no aguardo desse período bem mais longo que vc vai ficar na estrada, torcendo para vc viver bem um dia após o outro, uma meditação após a outra ❤️
Torcendo pra você ultrapassar o desconforto e a dor física e completar a caminhada. Sim, você é forte. Estamos com você.
Beijo, menina