Hoje é dia 4 de setembro e estou sentada no bar-café que fica no centro da minúscula vila onde moro. Em Portugal há um nome especial para isso - um povoamento pequenino é uma “aldeia”. Pois bem, estou tomando uma água com gás no Texas Bar, o único estabelecimento comercial da minha aldeia. É hora do almoço de domingo, fiz uma pausa nos trabalhos da casa que estou construindo há seis meses e vim aqui para pensar no que preciso fazer antes de começar meus próximos vinte dias de retiro na semana que vem.
Quando você estiver lendo estas primeiras linhas, provavelmente já vou estar em retiro. Mas no ato de escrever ainda estou aqui no Texas Bar vendo a lixeira de reciclagem do outro lado da rua, escutando o senhor de camisa marrom pedir um copo de vinho tinto e vivendo um conto de fadas. Sou aquela menininha de seis anos que não conseguia dormir de emoção quando sabia que em uns dias ia fazer um passeio muito legal.
Sei lá, conhecer a praia. Comer um pastel na cidade com o papai. Visitar a vó no interior.
Borboletas na barriga. No Texas Bar sinto a delícia das promessas antecipadas. Em alucinações coloridas, vejo flutuar a mala minúscula que vou levar só com as roupas de que realmente preciso, o quartinho de 2mx1.5m onde meu corpo cabe sem excessos, as horas na almofadinha de meditação, as longas caminhadas que farei sozinha, o silêncio à noite sem séries de tv, sem ter que fazer supermercado, sem cuidar do gato, sem limpar a cozinha, Sem.
Posso dizer do lado avesso e ainda assim será verdade. Tenho a impressão de que dentro de alguns dias, quando o retiro começar, finalmente vou poder viver minha vida de verdade.
Como se a vida normal fosse só uma historinha e a vida no retiro é que fosse a vida real.
Mini-diário
Dia 2: meu Deus, este é o quarto mais lindo do mundo. Uma cama, uma janela, uma porta e uma estante. Uma foto do meu professor na parede, pequena. Mais nada. O colchão mais mole do mundo. O travesseiro mais fino que existe.
Dia 7: dor na lombar e no ciático, o peso dos anos na frente do computador anunciado no meu corpo depois de 7 dias sentando na almofadinha de meditação e dormindo neste colchão. Quero agarrar o telefone, encontrar uma voz ou uma notícia. Penso no Lee. Penso na obra da minha casa acontecendo sem mim. Penso em como vou conseguir publicar meu próximo livro. Penso na seca do último ano. Penso em mudança climática. Pressinto o fim do mundo. E as eleições, claro. Quero saber das eleições. Agarro o telefone e corro por um milhão de notícias, esfomeada.
Dia 12: acordo à noite com taquicardia. Tenho medo, um medo enorme como o céu estrelado, cada ponto de luz é um monstro que me ameaça sei lá com o que; meu medo é universal demais para ter nome. O Grande Medo do Mistério Cósmico. São duas da manhã. São tempos malucos. Uma coruja pia. Faz frio no quarto. Limpo o suor com a manga do moletom. Ponho as mãos na barriga. Respiro através do monstro. Ele me olha. Eu continuo respirando.
Dia 18: reviro o corpo na cama num sobressalto, o quarto inteiro treme. Minha vizinha está esmurrando minha porta às 11:30 da noite. Levanto de calcinha e olho pela porta entreaberta, meio pelada. Ela acaba de se trancar de volta no quarto dela.
Dia 19, 6:30 da manhã, a caminho da meditação: bom dia, por que você esmurrou a porta ontem?
- É proibido fazer barulho no quarto.
- Mas você não precisa arrebentar a porta do monastério pra me dizer isso.
Dia 19, 3 da tarde: no caminho para o chuveiro, vejo minha vizinha de quarto. Tem uma banana na mão, está sozinha e chora sentada numa pedra. Um menino que passa vai acudi-la, are you ok? Talvez não esteja. Ele senta ao lado, ela se acalma. Acho que minha vizinha encontrou os monstros dela ontem à noite. Não dá para saber o que a gente carrega, a não ser quando para e olha. Como diz um monge budista que conheci na Índia, a verdade, darling, é que minha mente é um bairro suspeito que tenho medo de visitar.
Por que fazer um retiro?
Bom, no meu caso não é 100% um retiro. É mais uma imersão: nestes vinte dias ainda converso esporadicamente com amigos que encontro no ashram, escrevo e fico ativa no email a cada dois dias. Fora isso, removo meu corpo do cotidiano como quem apaga uma frase escrita a lápis. Enquanto a página da vida fica em branco, me pego pela mão e saímos, eu comigo, para passear dentro das nossas paisagens interiores nunca antes navegadas.
Não sei responder por que a gente faz retiro. Já fiz muitos, mais de vinte. Mais de trinta. Alguns completamente em silêncio, sem qualquer contato visual com as pessoas e com o mundo. Em outros, pratiquei em intervalos limitados enquanto trabalhava como voluntária ajudando os participantes no resto do tempo. Teve até um que precisei interromper no meio para respirar.
Mesmo sem saber por que faço, sei exatamente o que sinto depois que termina. É sempre a mesma sensação. A roda do samsara girou vinte dias sem mim e o mundo não caiu. O retiro terminou, estou de volta ao movimento. Na maior parte das vezes é difícil falar, o silêncio que descubro enquanto sento só é um lugar calmo pouco frequentado que me revela o quanto a comunicação nos exige.
Confesso que queria ficar mais tempo aqui, quem sabe seis meses em retiro, quem sabe até mais. Um ano, tenho o sonho de ficar um ano. Mas não agora. Agora é como é, volto para a roda mas pelo menos estou acordada em vez de esmagada por ela.
Para lidar com o automatismo da vida, recomendo retiro. Se o tempo é curto, quarenta e cinco minutos. Quarenta e cinco minutos de retiro, você faz assim: vou fechar a porta e deixar o celular para fora e este vai ser o meu retiro. Pronto, virou retiro. Ou um fim de semana. Ou em casa. Ou num centro de retiros. Ou numa caminhada muito longa de um mês.
Do jeito que der. Pensando bem, sei exatamente por que faço retiros. Para ficar sozinha e matar as saudades que sinto de mim.
Retiros & Retiros & Retiros
Tenzin Palmo, uma das primeiras mulheres ocidentais a se ordenar no budismo tibetano, passou 12 anos sozinha numa caverna. Destes, três foram em retiro restrito. Quando saiu para encontrar a roda do samsara, mais de uma década depois, Tenzin criou um monastério feminino. O Dongyu Gatsal Ling, no norte da Índia, é dedicado à transmissão dos ensinamentos budistas às monjas, historicamente excluídas das práticas espirituais mais elevadas (estas eram transmitidas somente aos homens). “A caverna na neve: a jornada de Tenzin Palmo rumo à iluminação” é um livro lindo publicado no Brasil pela Lúcida Letra - que, aliás, tem um catálogo maravilhoso que serve budistas e não budistas.
Nem todo retiro precisa acontecer numa caverna ou quarto fechado. O de Mingyur Rinpoche foi caminhando pela Índia, durou quatro anos e teve crises de pânico no meio. Apaixonado pelo mundo é outro título lindo publicado pela Lúcida Letra.
Travelers and magicians (2004) é um filme dirigido por Khyentse Norbu - ele próprio um lama reconhecido internacionalmente dentro da tradição do budismo tibetano. Foi totalmente filmado no reino do Butão com atores não profissionais e até com membros da guarda real butanesa. Lindo, o filme é inspirado em parte por uma história tradicional budista que revela bem a relação entre a mente e nossa percepção do tempo. Assistir é tipo fazer um retiro com pipoca.
Novidade pequenina
Não sei se todo mundo notou, mas o Sofá da Surina mudou de logo e de endereço.
Era uma mudança que eu queria faz tempo. Não se preocupe, o Sofá da Surina vai continuar chegando na sua caixa de emails. A novidade é que você pode visitar a página no Substack, ler as edições anteriores, deixar comentários e compartilhar com as pessoas que você acha que podem gostar de ler sobre vida contemplativa e criação.
Estou muito feliz, porque agora você também pode encontrar as contemplações passadas sempre que quiser, no seu tempo. Para dar uma espiada:
Ah!, e que vocês sejam felizes sempre. Bom voto pela democracia neste domingo, e até a próxima,
texto maravilhoso 🌿 sempre me faz bem te ler