Moro numa cidade pequena no interior de Portugal. São Martinho das Amoreiras não tem supermercado, farmácia, e é casa para pouca gente.
Bem-vindx ao Alentejo profundo, lugar de encontros impronunciáveis. Às vezes avisto porcos amarrados num tronco de árvore comendo as bolotas dos carvalhos de cortiça na beira da estrada. Às vezes, quando estou deitada na rede de casa, um rebanho de ovelhas berrantes aparece no horizonte e sai pastando no quintal. Não temos vizinhos e o terreno é grande.
Fora os habitantes da vila, ninguém me visita. Os amigos que estão de passagem por Portugal pulam esta parte do itinerário, “não há nada de especial para ver deste lado do mundo”, eu aviso.
Às vezes recebemos tempestades do Saara, e nestes dias os carros e o piso da varanda ficam cobertos por uma poeira laranja grossa. Meu Deus do céu, estou em Arrakis - e desenho mentalmente o planeta desértico mencionado por Frank Herbert em Dune com os traços da minha vizinhança.
Quando me perguntam como vim parar aqui, respondo a verdade. Há cinco anos decidi mudar para um monastério que fica nesta região. Morei lá um pouco mais dois anos e acabei ficando nas imediações depois que o deixei.
Este lugar me escolheu, muito mais do que eu a ele.
Ano passado construí minha casa em São Martinho. Comprei um terreno no meio de uma floresta de eucaliptos a quinze minutos a pé da vila. Mandamos cortar os eucaliptos e reformamos uma das duas ruínas que estavam plantadas no terreno - um casarão muito doido que originalmente era uma pocilga.
O terreno foi barato porque não tem ligação com as redes de água e luz. Por força das circunstâncias, nossa casa é offgrid. A água vem de um poço artesiano e a eletricidade, de um sistema solar megapower que o Lee instalou.
Construir deu trabalho e me tomou completamente. 2022 foi o ano em que parei de fazer tudo para ficar na obra - de meu, só mantive a escrita (e esta Newsletter, que na época era mensal). O nome surgiu durante a construção:
- Vai chamar Jardim Amithaba
, informei ao meu marido.
- Jardim Amithaba?
, ele repetiu, achando horrível.
- Yes, Jardim Amithaba.
- Amithaba, Amithaba, Amithaba.
Depois de mastigar três vezes, o nome amaciou na boca e ele aceitou com mais alegria do que resignação.
Amithaba é um Buda antigo. Muito mais antigo do que Shakyamuni – o “Buda histórico”, aquele no qual pensamos imediatamente quando a palavra Buda aparece. Shakyamuni nasceu há mais ou menos dois mil e quinhentos anos, ao passo que Amithaba – dizem os registros – viveu num tempo no qual o sistema de mundos era outro, sendo difícil dar-lhe datas compreensíveis para a mente humana.
A lenda diz que, antes de se iluminar para virar o Grande Amithaba - o Buda da Longevidade - ele era um monge chamado Dharmakara cheio de boas ações e práticas espirituais intensas. Um dia Dharmakara fez uma aspiração: queria criar um lugar maravilhoso no universo ao qual todas as pessoas que o evocassem em busca de refúgio fossem morar.
Há lugares assim em todos os pontos cardeais. Para onde quer que olhemos, entre as fibras do tempo-espaço há um espaço intocado esperando para ser descoberto.
A terra pura do Buda Amithaba fica na direção oeste.
Sukhavati, é como se chama.
A terra pura do Buda Amithaba tomou forma a partir dos méritos acumulados por aquele monge. Ele tinha entendimentos tão bonitos sobre a existência que já não cabiam mais dentro de si, por isso tiveram que se manifestar externamente. A compreensão profunda sobre o coração da vida virou um lugar.
Na tradição do budismo vajrayana – o budismo tibetano – há uma porção de práticas que podem ser feitas no momento da morte. Uma delas consiste em evocar o Buda Amithaba e, na hora da partida, deixar o corpo pelo chacra do topo da cabeça. Fazendo isso, você irá direto para Sukavati, a terra do Buda Amithaba.
Não é um paraíso do felizes para sempre. É mais um lugar onde você tem todo o apoio do universo para compreender por si mesmo a natureza da existência.
Será que a Terra Pura do Buda Amithaba é um lugar real?
Neste podcast incrível que discute (entre outros temas) práticas para se preparar para a morte, a lama Tsultrim Allione menciona que sempre tomou Sukhavati como uma metáfora. À medida que começou a praticar com mais intensidade, ela realmente entendeu que a terra do Buda Amithaba existe.
O trabalho aqui no Jardim Amithaba é interminável.
Em maio, fui fazer o caminho de Santiago porque estava sobrecarregada. Sempre havia algo para fazer. Uma coisa qualquer para construir, uma muda para plantar, árvores para regar, podar, arrumar. Eu queria chegar ao fim. Eu queria ganhar do tempo. Eu queria que ponteiros anunciasse a balada do ponto final. Terminar a construção, transformar a minha casa num lugar bonito e eterno que vivesse por si mesmo com o mínimo esforço da minha parte.
A condição de morar num lugar de trabalhos infinitos me deixava nervosa, e sem saber como resolver o problema fui
caminhar. Caminhei 815km até Santiago de Compostela, e quando voltei o Jardim Amithaba continuava igual. Quer dizer: um pouco mais quente (era verão), mas notei que eu tinha algo diferente dentro de mim, e esta coisa diferente era a descoberta de que a gente nunca chega em Santiago. A gente até pode chegar, mas nunca chega, e mesmo depois de chegar, a gente continua
caminhando.
Ou, para dizer de outro jeito. Posso construir reformar pintar podar aguar plantar carregar tijolo saco de areia enxada ferramentas variadas, mas no Jardim Amithaba - assim como em provavelmente todos os outros jardins da vida neste corpo humano - sempre haverá mais a fazer. O nome disso é
samsara. Por isto, então, a única coisa a ser feita é
caminhar.
Esta certeza muito pequena me fez pensar em outras grandes histórias, como por exemplo no mito de Sísifo, condenado a carregar a pedra morro acima
só pra deixar essa pedra rolar morro abaixo logo depois. Ou mesmo na roda do samsara.
Você já viu a roda do samsara? É um círculo que começa no nascimento e termina na morte, ilustrando o caráter cíclico do sofrimento
: nascer, viver, sofrer, morrer, só pra nascer e voltar tudo de novo. Tipo lavar louça, que não acaba nunca. Rola aquele momento minúsculo de satisfação depois de enxaguar o último prato, aí você quer comer um pedacinho de kiwi meia hora depois e boom: começa a loucura outra vez.
Há dois dias o moço que veio instalar o ar condicionado me contou que costumava passar as tardes aqui na pocilga quando era adolescente. Ninguém passava nesta região; no terreno que mais tarde virou Jardim Amithaba ele era livre. Junto com os amigos, arrombou o cadeado da porta e colocou um sofá velho no fundo da sala. Ficavam aqui, namorando e fazendo sei lá o que.
E também tem outra história. Ano passado o homem que operava a máquina dos eucaliptos fez uma pausa pro almoço e me mostrou onde ficava o seu quarto, a cozinha, a casinha do cachorro. A família dele era muito pobre e eles moraram uma década na outra ruína que faz parte do nosso terreno e agora está destruída.
No presente, as tarefas continuam. A tampa da privada estragou; precisamos consertar urgente.
Estou plantando muitas espécies diferentes aqui. As orleandas precisam de pouca água. Dão flores brancas ou cor de rosa e crescem rápido. Toda semana estão maiores - daqui a um ano, possivelmente, deixarão de ser arbustos para virar árvores.
Já os pinheiros guarda-chuva e as corticeiras são enormes e lentas. Apesar de regá-las religiosamente, talvez eu nunca as veja crescidas. É possível que eu já não esteja mais aqui quando elas estiverem grandes. Que eu tenha morrido ou me mudado para outro lugar.
Quem sabe?
É mesmo um mesmo.
Ou talvez eu continue no Jardim Amithaba e deite embaixo delas na velhice.
Não sei.
Mas continuo a regá-las assim mesmo.
Novidade no Kindle
Uma nova edição toda linda d’O mundo sem anéis - meu livro de estréia - está disponível em formato Kindle. O mundo é uma narrativa sobre a viagem de bicicleta que fiz sozinha por mais de 5000 km - e três meses - pela Espanha. Enquanto a primeira edição continua esgotada, o Kindle ficou mais bonito para esperar a segunda edição em papel, programada para sair ano que vem junto com o meu romance novo.
O botão aqui de baixo te leva para passear no site da Amazon:
Notinhas
A lembrança do mito de Sísifo na edição veio por causa da Julliany Mucury, que o mencionou na última de uma série maravilhosa de entrevistas que deu sobre os álbuns do Legião Urbana no canal do YouTube Pitadas do Sal. Absolutamente imperdíveis.
Aliás: a Ju é autora do livro Renato, o Russo, fruto da sua pesquisa de doutorado na faculdade de Letras da UnB. Ela fala um pouco do livro (e do Renato!) nesta entrevista aqui.
E a Vanessa Guedes, da Segredos em Órbita, vai oferecer uma oficina sobre escrita (com foco em Newsletter) nos dias 2 e 3 de setembro.
Ah!, e que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Sua escrita me conforta como um abraço. Me deixa com um gostinho de ter o que pensar e o que sentir. Saudades, Mari, excelente texto :)
Ebaa vou ver a edição do Kindle :))) E se algum dia precisar de mais mãos para regar os pinheiros, só chamar, gosto de vivenciar o tempo assim <3