“É na escrita de um poema que você encontra o que não está dizendo”. O insight atravessou o ar frio de outono na voz da Adrianne Rich, a poeta norte-americana que entre outras coisas escreveu um dos poemas mais lindos de todos os tempos, Diving into the Wreck.
Este mês decidi fazer um retiro para escrever. Criei o método e a estrutura, tudo baseado na minha experiência em retiros de meditação. Ajustei tempos de escrita alternando com caminhada, yoga e cozinha para terminar o romance que estou escrevendo há mais de dois anos. Queria virar 2022 com o primeiro manuscrito pronto.
Não terminei o manuscrito (quase). Ao contrário das milhares de palavras que eu esperava ver pulando para o arquivo de Word, naqueles dez dias a história decidiu não falar, numa mudez tenobrosamente resoluta.
Eu sozinha. A folha intacta.
No lugar do manuscrito pronto, o buraco vazio da palavra. A relação entre silêncio e escrita sempre me apareceu como oposição. Se eu sentar com disciplina e uma xícara de café com leite por duas, três, quatro, sete, oito, dez horas, em algum momento a história vai ter que falar comigo. O silêncio seria o avesso da criação, porque se faltam as palavras é porque não há história para ser contada.
Será que é isso? Então por que é que a vontade de escrever continua? Naqueles dias abracei a entrevista da Adrianne Rich e voltei um milhão de vezes para a frase-enigma: “é na escrita de um poema que você encontra o que não está dizendo”. Olhei cada vez mais de perto, contemplei de novo, deixei que a frase crescesse em mim até a manhã em que ela revelou o que queria ensinar.
Não é que eu não tinha o que dizer. É que eu achava que o que eu tinha para dizer era irrelevante, ruim e idiota.
Foi uma grande descoberta. Quantas vezes escutamos que um ato de criação é uma frescura que nunca vai levar a nada? Quantas vezes recebemos críticas indelicadas que nos separam dessa maravilhosa fagulha inocente e selvagem chamada coração?
As marcas da vida ficam sem a gente se dar conta, e ali, de repente, a folha em branco não precisava mais ser campo de batalha nem a prova do meu próprio valor. Toda vez que sento para escrever tenho que encontrar o lugar em mim que não fala por vergonha ou medo. É ali que vive a história.
Respirar. Ligar o computador. Deixar a prática cumprir sua penitência enquanto no meio do navio naufragado do silêncio vou descendo para o lugar profundo onde as histórias vivem em estado bruto e sem linguagem. Escrevo em fluxo e sem censura, o monstro da página em branco comigo e o texto saindo na forma de um poema, besta, lindo, imperfeito, sem quebra
tudo que ele quer
, baby
é uma xícara de chá
Liberdade, liberdade
- Coração, inteligência, coragem, revolução. Tudo cabe nesta entrevista maravilhosa da Adrianne Rich de 1973 (em inglês).
- Wild Geese, recitado pela própria Mary Oliver (em inglês).
- A Nathalie Goldberg tem insights que iluminam o mundo quando reflete sobre a relação entre mente e meditação. Com muitas décadas de dedicação ao zen budismo, ela escreveu o clássico-bíblia Writing Down the Bones que ainda não foi traduzido. Mas este título aqui tem um edição em português.
Para todas as critaturas que nos abraçam.
Para todas as criaturas que nos habitam.
Ah! E que todos vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima.,