Sofá da Surina

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#20. Escrita contemplativa

sofadasurina.substack.com

#20. Escrita contemplativa

Mary Oliver, Murakami & a escrita como prática

Surina Mariana
Dec 17, 2022
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#20. Escrita contemplativa

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Somerset Maugham escreveu que uma nova filosofia o espera toda vez que ele faz a barba. Concordo completamente. Não importa o quão mundana uma atividade possa parecer. Se permanecer com ela por tempo suficiente, a atividade mais simples acaba tornar-se um ato contemplativo - meditativo, até. (Haruki Murakami, “Do que falo quando falo de corrida)

Tudo bem por aí?

Alguém colocou um véu de viúva na frente da minha cara. Não importa para onde eu olhe hoje, tudo que enxergo é cinza, melancólico e funerário.

Deve ser esta época do ano. Sento na escrivaninha do atelier na companhia do café com leite tenebrosamente gelado e olho pra fora tentando roubar uma fagulha de vida das árvores. Sou um bicho hibernado numa cabana de madeira em pleno dezembro do hemisfério norte.

O gato dorme na cadeira ao lado. Faz frio, chove sem parar há duas semanas e a água começou a infiltrar pelas paredes. Dentro do atelier que construí para ser meu refúgio secreto, sinto a tristeza de quem habita uma casa que, mal começou, já está a ser destruída.

A luz entra pela cortina mas não chega ao meu espírito.

Como vou conseguir escrever hoje?

“Writing comes from need”, 2019. Aquarela, nanquim e carimbo

Há dias em que tudo que me cerca pede que eu cale. Você está péssima - diz a voz; não faz ginástica o suficiente; não tem nada pra dizer; precisa lavar roupa e comprar comida; sua vida é chata; vai escrever o que? E quem vai querer te ler?

Um dos temas de que mais se fala quando se trata de escrever é o velho dilema esforço versus inspiração. De onde, afinal, vem a escrita?

De dentro da minha catacumba existencial, hoje certamente não escreverei com a inspiração das borboletas. Se o ânimo está sorumbático, como entregar-se ao texto? É por isto que nesta manhã quero falar sobre a ordinária atividade de sentar e escrever, simplesmente.

Em dois maravilhosos livros de memórias, Haruki Murakami conta que a escrita é, para ele, um exercício regular que envolve disciplina e concentração.

Tenho a impressão que o livro sobre escrita mais comentado do escritor japonês é Romancista como vocação. Meu preferido, entretanto, é Do que falo quando falo de corrida, no qual Murakami desdobra suas memórias criando um paralelo entre a trajetória como corredor de maratona e como escritor. É um texto ao qual sempre volto porque me ajuda a deixar de lado a voz que me pede para ficar quieta:

“Às vezes corro rápido, mas se acelero demais o passo acabo diminuindo o tempo que vou passar correndo. Meu objetivo é fazer com que a energia que sinto ao fim de cada corrida se estenda para o dia seguinte. É o mesmo tipo de tática que uso para escrever um romance. Se você quer continuar, precisa manter o ritmo. Isto é importante para projetos longos. No momento que conseguir encontrar o ritmo, o resto caminha sozinho. O problema, então, é fazer o motor funcionar a uma velocidade certa - e chegar a ela requer toda a concentração e esforço que você puder ter”.

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Um lugar onde inspiração e trabalho não se opõem

Sempre achei que tratar a escrita como disciplina fosse o mesmo que arrancar-lhe o aspecto mágico. Ao longo da vida, formulei meticulosamente no insconsciente uma operação matemática de subtração: se você escreve com inspiração, então sua escrita é magia, nunca trabalho. Mas se você escreve com disciplina, então será pra sempre a formiga e nunca a cigarra - o texto surgirá mecânico, chato e sem alma.

Nestes últimos dois anos escrevi muito e a equação antiga foi perdendo o menos para ganhar um sinal de adição. A regularidade da escrita e o contato com o processo criativo de outros escritores me fizeram ver que era ilusão as limitações que criei. Ao sentar e escrever todos os dias, tenho a chance de passar tempo comigo para ouvir outras vozes latentes - e mais interessantes - que me relembram da aventura mágica que é estar dentro deste rechonchudo corpo da espécie humana com 68 quilos e 1,62m de altura.

Uma descoberta minúscula que é enorme. Por causa dela, encontro um refúgio íntimo mesmo neste atelier de paredes apodrecentes. Além da reconexão pessoal, fazer as pazes com o aspecto da escrita como prática me põe dentro de um campo invisível feito de outras as pessoas que, como eu, acharam na escrita uma forma de mergulho.

Não é que tenha que ser sempre uma prática disciplinada. Nem que a regularidade leve necessariamente a um texto que fica em pé no final. Meu ponto é o de que há muitos jeitos de escrever. Ao explorar possibilidades de estar com a escrita, a prática parou de ser uma palavra proibida no meu Dicionário Pessoal das Coisas Importantes.

E para terminar esta parte, quero dividir com você o que a Mary Oliver - uma das minhas poetas preferidas -, me contou no seu A poetry handbook:

Escrever poesia não é tão diferente [de um encontro romântico] - é uma espécie de caso de amor entre algo tipo o coração (…) e as habilidades que aprendemos por meio da mente consciente. Os dois marcam um encontro, aparecem na hora certa, e aí algo começa a acontecer. Mas se marcam o encontro e dão bolo, pode saber: não vai rolar nada.


Pois então: continua tudo igual por aqui. Continuo sentada na escrivaninha do atelier. O gato também - ainda está dormindo.

A chuva parece que vai longe.

E aqui mesmo, onde estou, escrevo isto que você lê agora.

Escrevo textos lindos quando estou inspirada, quando tem grana entrando, quando os projetos dos meus sonhos estão dando certo. Escrevo textos em dias bonitos nos quais caminho pela natureza e a vida está boa e o universo respira criação. Estes são os meus textos férteis e primaveris.

Mas escrevo textos muito bons quando a vida é uma merda e meu único refúgio é a escrivaninha. Escrevo textos lixo e textos ótimos em momentos de raiva e em momentos de ódio. São meus textos de verão: o sol a quarenta graus queimando tudo. A energia pulsando quer destruir tudo; a escrita é uma espécie de feitiço que transporta a raiva para outro lugar, além da storyline que gerou aquele ódio. Se insisto, na pior das hipóteses ganho um texto. Na melhor, a escrita faz um trabalho de transmutação.

Meus textos de outono acontecem quando perco algo importante. Um relacionamento, um trabalho; quando um ciclo se fecha. São textos de tristeza, escritos na melancolia de quem gostava de Legião Urbana e continua ouvindo Leonard Cohen. Outono é a melhor estação do ano, e a tristeza tem algo que nos retorna ao que é essencial.

E nos textos de inverno eu descubro o silêncio sobrevivente por baixo das coisas secas. Deixo o sol baixar da face da terra e aceito o que já morreu com a resignação da finitude.

Um dia já não estarei mais aqui.

Escrever é para mim uma prática contemplativa. Sento todos os dias, e escrevo. Meus textos continuarão, mas é improvável que me sobrevivam - sou provavelmente pequena deamis para este tipo de aspiração. Mas enquanto nascem, eu e eles somos parte disto que se chama vida.

E um dia eles morrerão também.


Novidades

  • Esta é a primeira edição da série Escrita Contemplativa, uma editoria nova que comecei aqui no Sofá da Surina. Não sei se todo mundo que está lendo sabe, mas passei um par de anos vivendo num ashram (tipo monastério). Desde que saí, há dois anos, comecei a testar do meu jeito as práticas meditativas na escrivaninha, tentando traduzir uma metade da minha vida dentro da outra. Agora me deu vontade de falar sobre isto, então de vez em quando você vai encontrar uma outra edição do Sofá como esta daqui, falando sobre minhas experimentações.

  • No último dia 15 de dezembro foi lançado em Brasília o livro “Os peixes também têm rugas”, com textos que produzimos durante uma oficina de escrita criativa ministrada pelo Marcelino Freire. Meu continho “Ganesha à beira-mar” está lá! “Os peixes” dá início às atividades da Editora Pousar - e eu estou feliz demais, porque sempre dá aquele brilhinho no olho de ver uma casa editorial sensível aparecendo no mapa brasileiro.

*As citações em português do Murakami e da Mary Oliver são traduções livres que fiz a partir do original em inglês.


Ah! E que vocês sejam felizes sempre. Até a próxima,

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#20. Escrita contemplativa

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2 Comments
Brenda Bellani
Dec 18, 2022Liked by Surina Mariana

Que edição linda.

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Patricia ॐ
Writes Uma com a terra
Dec 17, 2022Liked by Surina Mariana

Aiii sua escrita me inspira, independentemente da estação <3

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