Escrita contemplativa
Sem tirar a caneta do papel: uma técnica do zen-do para a escrivaninha
Esta edição do Sofá vem com opção de áudio. Se quiser escutar o texto, aperte o botão de Play aqui embaixo para ouvir minha leitura.
Oi, tudo bem com você?
Ano passado participei de um minicurso com uma das minhas professoras de escrita criativa preferidas. Mentira, na verdade foi com uma aluna dela. O nome da minha musa é Natalie Goldberg e a aluna que ministrou o workshop é a Dorotea Mendoza. O curso durou um final de semana e fazia parte de um programa do centro zen-budista Upaya Dharma, nos Estados Unidos.
Encontrar este workshop por acaso foi o mesmo que receber uma carta escrita pela Rainha de Copas anunciando que o buraco do coelho da Alice está disponível para visitas. É esquisito e profundamente enternecedor descobrir que em algum País das Maravilhas distante outra pessoa - talvez até mais de uma - também tenta juntar uma vida de metades tão improváveis quanto as minhas. Meditação e escrita. Dá uma sensação de des-exílio, mais ou menos assim
: posso até morar neste lugar com mais ovelha do que gente, mas não estou sozinha
Natalie nasceu antes de mim e ainda na década de 70 tinha desejos parecidos com os meus. Passou doze anos estudando com um mestre zen e no meio do caminho percebeu que sentar na almofadinha de meditação era importante, mas difícil. Ela gostava de escrever. Então transforme a escrita na sua prática, orientou o mestre japonês, e nos anos seguintes Natalie explorou a aventura sem receita de traduzir os ensinamentos espirituais para a vida – no caso dela, para a escrivaninha.
Em 1986, as explorações da Natalie apareceram sob a forma de um livro tão influente que até hoje está sendo impresso. O clássico contemporâneo Writing Down the Bones é meu livro de cabeceira, meu tesouro secreto, meu ursinho de pelúcia.
Li meia dúzia de livros da Natalie mas até aquele curso só tinha praticado as técnicas dela sozinha. O método de Writing Down the Bones começa com uma regra: não importa o que aconteça, deixe a caneta se mexendo na folha de papel.
Técnica simples porém ordinária. Que me lembra as orientações que recebemos quando começamos a meditar - para iniciar, vamos passar vinte minutos observando nossos pensamentos, diz o instrutor. O que acontece depois é um clássico: é só cruzar a perna na almofadinha de meditação que aquela voz cheia de good vibes do professor se transforma num show de dark metal onde a banda chamada Minha Mente faz um show particular na minha cabeça com músicas sinistras que vão desde a lista do mercado até medos tão dentuços que não tenho coragem de contar aqui.
Assim como na almofadinha do templo, deixar a caneta se mexendo no curso foi um troço terrível. A sensação não mudou nos dois dias de workshop. Deixe a caneta se mexendo na folha de papel significava que depois de escrever uma frase era preciso continuar escrevendo, sem poder voltar para a sentença que eu tinha acabado. O fluxo só ia para frente, nunca pra trás, por isso minha tendência de querer melhorar a frase que eu tinha acabado de criar, ou mudar uma palavra por outra – nada disso podia acontecer.
Não risque. Não mude. Continue mexendo a caneta.
Além disso não dava para planejar o texto. Não dava para receber o tema do exercício e estruturar: primeiro isso, depois coloco essa frase aqui, depois esta ideia para fechar… Não. A caneta se mexia loucamente; o texto ia se formando de um jeito caótico, meu Deus, que troço mais dadaísta sem pé nem cabeça - era só isso que eu conseguia sentir.
E talvez um pouco de vergonha de ter que ler aquilo depois.
Mas escrevi. Escrevi por dois dias, seguindo as instruções da professora. Escrevi à mão, fazendo exercícios de cinco minutos, dez minutos, dois minutos, keep moving the pen, dizia a mulher do outro lado da tela.
Quando o curso terminou, enfiei o caderno na gaveta da escrivaninha e fechei. Segundo a professora, eu só devia ler meus textos dois meses mais tarde.
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Um mês depois, juntei coragem. Ao abrir o caderno com capa de florzinhas alaranjadas, entretanto, demorei para acreditar no que estava lendo. Os textos que escrevi no workshop eram tão bonitos que nem pareciam meus, embora minha memória atestasse que tinham saído de mim. O raciocínio ia se construindo em zigzag, uma frase aqui, a outra ali, o próximo parágrafo retomando o primeiro e assim por diante.
É claro que se fosse virar história com coluna vertebral os textos iam precisar de costura e vitamina. Mas o ponto não é esse. O ponto é que naqueles exercícios há elementos de cenas, ambientações, traços para possíveis personagens - tudo lindo, fresco e principalmente vivo. Muito mais colorido do que quando escrevo do jeito que eu achava que era certo e meu - ou seja: calculadamente, no esforço de uma perfeição inventada que só então eu percebi que amarra os pés da minha mente em vez de deixa-la viajar.
Acho que existem muitas formas de escrever, por isso desconfio de instruções que aparecem como remédio para curar todos os males. Escrever é um jeito de se relacionar com a experiência da vida. Só você vive dentro do seu corpo, escreve do jeito que escreve, e conta histórias que no fim das contas são suas e de mais ninguém.
Pra mim o método da Natalie foi uma revolução. Não só pelos resultados, mas pela capacidade de aproximar a escrita da viagem contemplativa.
Para Natalie, a escrita não é para ser combinada com a prática – a escrita é a prática. Você pode combinar, claro – sentar-se em silêncio por alguns minutos e observar os pensamentos antes de escrever, por exemplo. Ou fazer caminhadas meditativas no intervalo entre sessões de escrita.
Mas enquanto escreve, você também está em prática, observando os pensamentos que vêm e que vão sem apegar-se a eles. Você segue o que parece mais forte, a primeira intenção, a ideia intuitiva que chegou sem anunciar onde vai terminar. O risco de não saber. Tudo pode passar na sua frente, mas a caneta continua se mexendo, e continua se mexendo mais rápido do que a linha lógica de pensamentos. Basta colocar uma palavra depois da outra. Quando o alarme tocar anunciando o fim dos cinco, dez, quinze minutos, você vai saber: chegou a hora de parar.
Enquanto escreve, você está completamente presente com a escrita e deixa que ela te mostre o que tem a dizer, vindo de um lugar desconhecido do oceano.
Depois que a escrita termina, você deixa o papel e a caneta e se despede, sem cobrar do texto o que ele não pode te dar.
Leia o que escrever daqui uma semana.
Depois me escreve dizendo o que encontrou.
O exercício das 5 listas
A Suleika Jaouad é uma autora norte-americana que tem uma Newsletter incrível aqui no Substack. Este é um exercício que ela propôs no primeiro dia do ano - o exercício das 5 listas. A ideia aqui é fazer as cinco listas usando o método da Natalie. Que tal?
Então vamos lá: sem tirar a caneta do papel, coloque o alarme na escrivaninha e marque 5 minutos para cada uma destas listas de começo de ano:
Quais são as coisas que eu fiz no ano passado e me deram orgulho?
O que eu tenho vontade de fazer este ano?
O que é que está me causando ansiedade?
Com quais recursos, habilidades e práticas eu posso contar este ano?
Faça uma lista com as suas ideias mais loucas e selvagens.
Newsletters lindas
Newsletters enchem a minha vida de notícias inteligentes, interessantes e coloridas. Estas edições aqui fizeram a minha cabeça na última semana:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,