Aprendi a pisar suave com o caminho.
São de 4 a 6 horas andando todo dia há vinte e oito dias seguidos, já, sem descanso. Pode parecer poético, mas pisar suave é um ensinamento que vem do sofrimento. Se ando rápido, piso duro no chão e a consequência é dor insuportável na sola dos pés.
Aprendi outras coisas também. A esta altura da caminhada, consigo reconhecer as marcas da pressa em mim e nos outros. A pressa é o oposto da agilidade. Caminhantes ágeis são elegantes. Quem anda com pressa pisa forte e feio, descrevendo uma trajetória desesperada pela estrada.
Aprendo estas coisas enquanto vou andando. São as vantagens da atividade persistente e intensa. Cada passo de cada dia de cada hora vai virando inteligência no corpo. É um conhecimento direto e insubstituível, um saber íntimo. Ler sobre caminhada não me dá este tipo de saber. Caminhar que se aprende ao caminhar.
Da estrada para o papel, letras são uma espécie de passo. Uma depois da outra, elas formam palavras que depois formam frases que depois formam parágrafos e histórias e livros.
Se escrevesse com a dedicação desta minha caminhada por vinte oito dias, de quatro a seis horas por dia, o que eu descobriria sobre a minha escrita? O que eu descobriria sobre o que tenho pra dizer? Sobre o jeito como a minha mente funciona? Sobre mim?
Penso muito sobre escrita aqui, em pensamentos que são como as galinhas que vejo agora ciscando na beira do rio deste povoado altamente galináceo onde parei hoje para descansar. Estou em Las Herrerias. Ao longo do Caminho, meus pensamentos recorrentes sobre escrita não são um banquete de mesa posta; eles são mais tipo uma petiscação interminável de minhocas que dão em grama fértil.
É esta natureza de intercruzamento que você vai encontrar na edição de hoje.
Natalie Goldberg diz que a escrita envolve os seguintes elementos:
- caneta
-papel
-mente
A caneta e o papel a gente pode trocar por computador e teclado, mas a mente é companhia inevitável de quem senta para escrever. Por isto, então, Natalie fala da escrita como prática: assim como acontece na meditação, a escrita pode ser um meio de conhecer o funcionamento da mente.
Já falei da técnica dela aqui antes. É um método simples que consiste em escolher um tema de entrada, marcar tempo no relógio e escrever sem tirar a caneta do papel, parar ou editar.
Conheço a técnica da Natalie há 4 anos, mas desta vez, lendo um dos seus livros nesta viagem, me chamou a atenção um aspecto que não tinha notado antes. Enquanto a caneta vai se mexendo, ela diz, somos convidados a seguir nossos primeiros pensamentos. Isto é: as primeiras impressões, aquilo que se anuncia à consciência com a força ainda não povoada pelos “segundos” e “terceiros” pensamentos.
Sabe? Segundos e terceiros são aqueles pensamentos que não gostam dos primeiros, ou censuram os primeiros, ou que te convencem a parar o fluxo de escrita para inserir no parágrafo anterior um elemento que com certeza vai aumentar o sucesso do seu livro que nem existe ainda. É o que eles dizem, e a gente acredita, para, perde o fio da meada e mal se dá conta está de volta, escrevendo só com a cabeça.
Os primeiros pensamentos são ouro, uma porta de acesso à experiência presente, àquilo que emerge das nossas catacumbas quando o censor, o árbitro, o juiz, a nossa auto-imagem estão no plano de fundo.
Quando nos deixamos levar pelas primeiras impressões, a própria experiência pega a caneta. A escrita escreve. “Let writing do the writing”
, é o convite da Natalie.
Meu Professor é artista plástico. Além de dar ensinamentos sobre meditação e sobre a natureza profunda da existência, ele pinta quadros enormes e coloridos.
Uma vez recebi instruções dele enquanto fazia uma ilustração. Eu trabalhava num pequeno retrato em aquarela de um homem dançando de braços abertos.
Não precisa ter medo, darling, ele dizia, pode pôr cor aí.
Depois: Não fique pensando muito na hora de rascunhar. Vá seguindo a linha mais forte.
O que o meu professor estava querendo dizer com isso?
Ele estava me apontando os “primeiros pensamentos” da Natalie. Em vez de calcular as cores e como elas ficariam, ele me pedia para usar as que eu realmente queria. Em vez de planejar o esboço, me orientava a seguir meus próprios instintos.
-Mas se o nariz ficar torto com essa linha forte aqui?
-Aí, baby, você vai ter criado um novo estilo todo seu.
O catálogo da biblioteca do ashram só tem títulos espirituais. Advaita, zen, Budismo Tibetano, taoismo, cristianismo, sufismo etc. Toda vez que entro naquela sala minúscula, sinto-me intimidada. Reconheço no ar a presença viva de todos os que escreveram os livros que estão nas estantes.
Quando leio um poema em voz alta para alguém, uma linha fina se estabelece entre a voz do autor daquele poema e a minha.
Enquanto caminho, me vem à consciência a experiência daqueles que caminharam antes de mim. Tibetanos em direção ao exílio na Índia ou no Butão, cruzando as maiores montanhas do mundo. Chogyam Trungpa e o grupo de exilados que o seguiu: no final da jornada, eles ferviam os sapatos para come-los. Jesus - penso em Jesus e em seus apóstolos; eles caminhavam muito. É um gesto maravilhoso e antiquíssimo este, o gesto de caminhar.
Escuto um podcast. O entrevistador pergunta à Natalie:
-Que conselho você daria para um escritor iniciante que quer encontrar a própria voz literária?
-Isso aí é a bobagem. Coloque a caneta no papel. Continue mexendo a caneta. E descubra o que ela vai te mostrar. Depois você pode chamar de voz, se quiser.
Podcast. O entrevistador imaginário me pergunta:
-Qual seu conselho para caminhar melhor?
- Caminhar melhor é bobagem. Caminhe todo dia e descubra o que a caminhada vai te mostrar.
Foto acima: auto retrato aminhando na floresta com chuva, zero visibilidade, frio, neblina e um potencial resfriado. Todo dia caminhar com o que aparece na frente e com a mesma mochila; não escolher. Atravessar o que se apresenta, só uma pergunta permanece: por que não trouxe sapatos impermeáveis?
Objeto do momento: panturrilheira. Deus abençoe este maravilhoso aparato elástico que esmaga a batata da perna e me dá a esperança de que poderei caminhar novamente amanhã. Pois é: para aumentar a coleção de dores, hoje ganhei uma distensão muscular.
Livro do momento: Long Quiet Highway, da Natalie Goldberg. É um livro de memórias honesto e maravilhoso no qual a Natalie fala sobre escrita, busca espiritual e escrita como busca espiritual. No livro, ela conta a história dw sua relação de mais de uma década com o mestre zen Katagiri Roshi e o modo como esta relação construiu seu entendimento sobre escrita.
Este texto está sendo escrito no celular enquanto repouso dentro do saco de dormir com as pernas para cima e copio as notas que escrevi no meu caderninho de viagem. Por favor, tenham paciência com erros de ortografia e edição.
Obrigada de novo a todas as pessoas que vêm apoiando o Sofá da Surina aqui e ali pagando um café para a escritora. As contribuições de todo valor são recebidas com muita alegria - elas me ajudam a entender que voces estão aí e me incentivam a continuar escrevendo as edições do Sofá. E - claro - , os cafés virtuais viram café 3-D aqui no Caminho de Santiago.
Ah!, e que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Tão bom te ver no caminho. Tão bom te ler no caminho. Atrasada aqui porque andei por outras bandas. Chego com 13 comentários anteriores.O meu vai ser o 14. Dia 13 fiquei um ano mais perto da velhice, que espero me encontre caminhando. Ia dizer correndo. Mas depois de te ler sobre a pressa e a falta de graça troquei por caminhando mesmo. Sigo mandando tua News letter para muita gente, as vezes para as mesmas, novamente. Vai que se esqueceram ou perderam. Mas, não sei porquê o site não me deixa ainda te pagar um café. Mas continuo tentando. Obrigada por me receber em teu caminho. Um beijo minha amada xará.
Maravilhosa, obrigada por compartilhar <3
Natalie é vida, né xuxu?