Eu tinha desistido da poesia… Então saí por aí e comecei a escrever poemas sobre pedras e passarinhos de pena azul. Olhei para meus novos textos. Eles não tinham nada a ver com o que eu tinha escrito antes, então pensei: ‘estes devem ser o meus poemas’. (Gary Snyder)
Li em algum lugar (não lembro mais) um relato de José Saramago contando sobre uma epifania que transformou para sempre o modo como ele escrevia.
Você já leu algum livro do Saramago? Ele tem uma escrita inconfundível. O raciocínio vai se costurando em parágrafos enormes onde uma frase brota de outra que brota de outra e as vírgulas estão no lugar onde estamos acostumados a encontrar pontos. Os diálogos entram no meio, num festival de ideias que é próximo da oralidade e do fluxo de consciência sem nunca ficar hermético nem chato.
No relato de origens misteriosas, Saramago conta uma história. Ele diz que já escrevia há anos e tinha publicado alguns livros quando notou que não precisava colocar as ideias que lhe surgiam na cabeça em bloquinhos pequenos cartesianamente o r g a n i z a d o s.
Foi um insight.
Quando isso aconteceu, Saramago aceitou o que estava diante de si há tempos, escondido por trás da invisibilidade do que nos é próximo demais: o modo como ele pensava e traduzia o mundo em linguagem vinha através de um continuum.
Por que estou falando isso? Estou falando isso para apontar que naquele insight Saramago entendeu algo genuíno sobre si. Em vez de querer se ajustar, o escritor começou a ouvir a própria voz.
Bom, esta é a minha versão. Não posso prometer que Saramago pensou exatamente assim e nem que esta história é verdadeira. Às vezes ou quase sempre a realidade se mistura à ficção, especialmente agora que estou falando de uma memória antiga sobre algo que li uma vez e cuja fonte nem encontro mais.
Ou pode ser que a memória do que li seja precisa mas o Saramago tenha inventado a história, criando um personagem de si mesmo. Escritores gostam de fazer isso de vez em quando.
De qualquer maneira, acho uma fábula bonita que serve de desculpa para a edição de hoje, que é sobre escrever com desapego e permissão.
No começo de 2021 comecei a fazer cursos de escrita criativa porque estava bloqueada. Tentei de tudo, mas minha escrita sofria de uma prisão de ventre que só piorava.
Eu queria escrever e o texto tinha que ser bom. Mas não saía nada.
Um dia, de tanto tentar, a exaustão me obrigou a admitir: estou desesperada.
Bloqueio criativo é horrível. Dá a sensação de que a gente está seca por dentro, a mais tediosa das criaturas. Quando já não havia esperança, quando a coisa estava trash, quando os sonhos projeções ideias vaidades autoconfiança autoestima dignidade - quando isso acabou e eu não lembrava mais que escrita podia vir com prazer'; quando sentar pra escrever virou a experiência mais horripilante do meu dia
- quando isto aconteceu, só sobrou a humildade gloriosa de um foda-se vou escrever qualquer merda.
Marquei quinze minutos no relógio e comecei a botar coisas pra fora.
Coisas muito estúpidas.
No dia seguinte repeti a mesma atividade. No dia seguinte, e no próximo e no próximo. As ideias no papel não faziam sentido, mas fui escrevendo de qualquer jeito e o raciocínio foi
acontecendo. Fazia sol lá fora, um dia muito claro
eu não tinha cadeira confortável, só a da cozinha, e a cozinha naquela época ficava na parte externa de
casa. Escrevi escrevi escrevi
o gato sentou para tomar sol na cadeira ao lado
do alto do céu caiu um maço de flores sobre o teclado do laptop
- é primavera –
, pensei. Em 2021 eu morava (literalmente) numa casa em cima da árvore.
Escrevi daquele jeito todos os dias. Não foi rápido, acho que demorou uns oito meses para que eu entendesse o que estava acontecendo. Um dia, à la Saramago, a verdade bateu na minha
porta. E a verdade era que eu me sentia em casa quando escrevia
: assim. Meu pensamento vinha entrecortado em pequenos bloquinhos, e o texto desse tipo, num fluxo cortado de pequenas ideias, tinha uma organicidade que não encontro nos meus textos certinhos. O texto em fluxo era o que saía. O texto saía e não precisava ser bom. Principalmente, o texto saía
e saía do jeito dele. Não havia obrigação. A partir deste dia, parei de me sufocar e comecei a escrever rascunhos deste jeito. Aprendi a deixar o pensamento acontecer do jeito
que acontece. A edição vem depois e eu adoro porque acontece em cima de um material que já existe. Editar e escrever viraram tarefas que acontecem em tempos diferentes. Em outras palavras: parei de escrever me editando ao mesmo tempo. Ou: parei de escrever impondo estrutura sobre algo que mal tinha acaba de nascer.
Na loucura de tentar escrever para ouvir a minha voz, precisei deixar o texto
acontecer, precisei deixar que falasse comigo e consigo mesmo e com a folha de papel e com o mundo feito uma criatura que existe quase sem a minha presença. O mais interessante é que quando fiz isso, descobri que o texto que acontece
sem mim
fica parecendo mais
meu.
Numa outra edição deste Sofá eu falei sobre o método da Natalie Goldberg de escrever sem tirar a caneta do papel. Meu ponto aqui tem um pouco a ver com aquele, mas não exatamente
- meu convite esta semana é o de escrevermos do mesmo modo como artistas e ilustradores esboçam. Sei por experiência própria: todo ilustrador tem um caderninho na bolsa. Quando uma cena interessante aparece ou o tédio vem, o caderno pula pra fora e ganha desenhos despretensiosos. Um cachorro dormindo em frente a um café. Uma gata preta com coleira de oncinha. Uma banana na mesa, uma senhora de chapéu rosa na fila da loteria. Desenhos que ninguém vai ver, desenhos que não querem impressionar.
Você já tentou escrever assim? Você já tentou escrever como se fosse um foda-se mesmo, como se não se importasse pra ninguém?
Também sou ilustradora e costumo visitar esboços esquecidos em cadernos antigos. Alguns são terríveis, mas a verdade é que quase todos são lindos. Esboços têm uma força inexplicável. Esboços são muito verdadeiros. Volta e meia pego um e transformo numa obra grande.
A maioria das minhas ilustrações é criada assim.
Penso no Gary Snyder. Ele diz que só começou a escrever quando abandonou suas ideias sobre a escrita. Deixar as coisas serem como são é um exercício importante de meditação. Existe algo profundamente compassivo neste exercício de aceitar o que é e o que nos é apresentado como texto. E é neste espírito que deixo vocês com este poema da Mary Oliver que me vem à cabeça sem razão:
Instructions for living a life.
Pay attention.
Be astonished.
Write about it.
Prática de escrita
Escrever despretensiosamente sobre temas despretensiosos no seu caderno de esboços:
Escreva um texto com o título “Natureza morta”
Me conte sobre o que você comeu na última vez que foi a um restaurante
Gato ou cachorro?
Notinhas
A citação do Gary Snyder é uma tradução livre do original em inglês: “I had given up on poetry... Then I got out there and started writing these poems about the rocks and the blue jays. I looked at them. They didn’t look like any poems that I had ever written before. So I said, these must be my own poems. “
Posso até não ter referências para o Saramago, mas com a citação do Gary Snyder está tudo certo. Você pode ler a entrevista dele onde esta fala aparece aqui (só em inglês).
Don’t write what you know, write what you feel. Fresquinho do The Guardian de hoje: dicas do Alan Moore, Carol Ann Duffy e Marjorie Blackman sobre escrita.
Cursos de escrita maravilhosos - fique de olho nestas pessoas: Ana Rusche, Marcelino Freire e Andrea del Fuego.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Sou saramaguete (saramaguer? Saramágico? Saramagético?) confesso, e um dos dias mais emocionantes da minha vida foi quando conheci a fundação Saramago em Lisboa. Sua história pode não ter referências, mas casa demais com quem ele era e com a escrita dele. Nas ultimas semanas tenho pensado muito sobre meu processo e é sempre bom ver como os colegas e os grandes mestres (também colegas) abordam a questão. Amei!
Tenho feito o 100dayproject e minha ideia é escrever um poema, ou rascunho de poema, com a primeira palavra que agarrar na minha mente ou saltar de algo que assisti, ouvi ou li. Alguns poemas estão ótimos, outros péssimos. A ideia é praticar em cima das ideias, nada mais. Pra quem se considera criativa, tenho tido uma enorme crise na escrita e o exercício do projeto me ajuda a não deixar de escrever. Adorei essa edição e natureza morta é dos meus temas preferidos na pintura. Qurria ser um quadro de natureza morta. Veja aí, já comecei a escrever. Beijo