Agora são exatamente onze e dezenove de um domingo de outubro. A manhã passou rápido, espremida entre duas rodadas na máquina de lavar, roupas para estender e uma leva que tirei do varal. Olhando através da escotilha da Electrolux, confirmo que a massa de pano preto-bege-vermelho está devidamente afogada na espuma azulada do sabão em pó; agarro o café com leite e corro para dentro de casa escrever esta edição da newsletter tendo a caneca azul de companhia.
Quarenta e cinco minutos, este é o tempo que tenho antes da próxima sacola de cuecas, calcinhas, meias e pijama sair da máquina de lavar. Quarenta e cinco minutos até que eu tenha que voltar à tarefa de estender as roupas, esquentar o almoço, lavar a louça do café da manhã e me trocar para passar a tarde carregando portas velhas, estantes e pedaços de madeira na obra da minha casa nova.
Sento na frente do laptop, a tela empoeirada é meu templo, as letrinhas aparecendo diante dos meus olhos são preces que faço a mim mesma dando graças por ter a maravilhosa possibilidade de me afastar da britadeira doméstica e acender velas no altar da minha existência nem que seja por um tempo minúsculo.
Por que você escreve?
Nunca soube responder e invejo meus colegas que têm clareza de intenções. Escrevo por um milhão de motivos, nem todos nobres ou dignos de revelação pública.
Mas hoje escrevo porque é o jeito que achei de sobreviver neste mundo meio Mad Max.
Esta Newsletter
Foi em maio de 2020. Minha casa era uma cabana de madeira de dois por dois com paredes e portas forradas de cortiça. Não havia eletricidade no meu quartinho do ashram, o que fazia os dias longos e as noites curtas e escuras, feitas só para dormir porque não dava nem para abrir um livro.
Frio, lua nova. Enrolada num cobertor indiano, bolsa de água quente na barriga, vi piscando no ar um vagalume. Deitada na cama, assisti o vagalume que foi virando uma ideia que virou uma voz que virou uma frase que ninguém mais ouviu a não ser a parte interna dos meus ouvidos porque a frase não vinha de fora. Dizia
você podia começar uma Newsletter
Um mês depois eu já vivia fora do ashram, numa cabana de madeira de 10m2 com eletricidade. Com autorização do meu professor, comecei um retiro estendido de quarenta e cinco dias. Sozinha e na a maior parte do tempo em silêncio, passava os dias no sofá de madeira antigo com estofado florido. Mesmo sem sair eu sabia: as ruas em volta de mim não tinham ninguém, lockdown, impressão de que o mundo tinha chegado ao fim e eu era um fantasma esquecido num planeta abandonado. Num final de tarde fiz um auto-retrato no sofá para ter certeza que ainda existia. Naquele dia, com um mês de atraso, respondi o vagalume no quarto vazio
vai chamar Sofá da Surina
Escrita e sanidade
Devo grande parte da minha sanidade à escrita, especialmente na pandemia. Devo minha sanidade aos escritores que conheci pela tela do Zoom nas oficinas de escrita criativa. Devo minha sanidade a exercícios de dez minutos com a folha de papel, às práticas de escrita meditativa (vai ser tema de uma edição do Sofá), ao manuscrito do romance que terminei (ufa!), ao desespero dos bloqueios criativos que me obrigaram a mudar de direção na folha em branco e fora dela.
Devo ao Sofá da Surina o ensinamento sobre desapego, porque todas as vezes que o email está para sair eu gelo por dentro, será que escrevi alguma coisa terrível? Será que é um texto chato? Longo demais? Será que sou insuportável?
Depois de apertado, o botão Enviar é uma sentença que só me dá a opção de jogar tudo pro alto e continuar, já que a outra possibilidade – arrependimento pelo que escrevi – não muda a realidade do que já virou passado.
Devo grande parte da minha sanidade ao Sofá da Surina, que me transportou da ideia de “preciso arranjar algum tema interessante este mês” para a redescoberta dos microporos da vida como fonte suprema da escrita. Minha vida, exatamente como é, minúscula, insignificante, mágica. Meus pés de tomate e meu gato já foram tema do Sofá. Minha vida, com os pijamas que estão rodando agora na máquina, afogados no detergente para depois ganharem vida nova estendidos sob o sol da tarde. Minha vida, com o relógio avisando é hora de largar este texto e carregar bloco de concreto.
A vida, tal como ela se apresenta.
Novidade & dicas
Desde a edição passada, este Sofá mudou de casa. Por um lado, nada mudou: você vai continuar recebendo as edições no conforto da sua caixa de email, como sempre. A novidade é que agora você pode ler edições antigas do Sofá na página só dele, comentar, mandar beijo, fazer comentários, soprar mantras, se recolher no escurinho comigo.
Você também tem Newsletter ou vontade de escrever uma? Nos dias 5 e 6 de novembro vai rolar O texto e o tempo, um evento online intensivo e maravilhoso sobre o tema. O ingresso custa 48 reais e as inscrições podem ser feitas pelo Sympla. Vamos nos encontrar lá?
Descobri a coluna do Julián Fuks um dia desses, e a descoberta foi uma alegria porque ele escreve lindamente sobre todo tipo de tema. Pensei que Julián é um pavão que abre a cauda e mostra pro leitor reflexões coloridas importantes sobre o mundo que por algum tipo de razão estavam escondidas - é um desdobrador de mundos. Este artigo aqui, em que ele escreve sobre os malabarismos que encontrou para manter a escrita e ser pai, foi uma grande inspiração para esta edição do Sofá.
Ah!, e que vocês sejam felizes sempre. Até a próxima,