#43. Escrita Contemplativa
Da cabeça para o peito: escrever trazendo o texto para perto do corpo
O processo de investigação proposto pelo Buda pode ser desafiador. Não porque os ensinamentos sejam abstratos, e sim porque nos incitam a explorar profundamente nossa própria experiência.” (Elizabeth Matthis Namgyel, “O poder de uma pergunta aberta – o caminho do Buda para a liberdade.”)
Deixei minha casa às oito e meia da manhã e desci para o atelier que fica no jardim com grandes desilusões depois de uma discussão horrível com meu marido.
Às vezes não entendo por que resolvi casar. Sabe, este sentimento?
O sol da manhã fazia desenhos na cortina cor-de-rosa; a copa fofa das corticeiras na frente da porta se mexia devagar. Diante da escrivaninha do atelier, minha única vontade era levantar e ir embora. Virar andarilha, jogar tudo pro alto, tirar a roupa, ir caminhando até o Canadá. As paredes foram ficando vermelhas (o ódio é um sentimento quente), o gato cinza me espiou pela porta e deu meia volta, recusando-se a entrar.
A concentração de bad vibes por metro quadrado era o dobro do tamanho da minha sala de trabalho.
Desejei jogar um copo na parede, mas só havia copos de plástico na escrivaninha. Em vez de colocar a raiva num receptáculo de vidro para ser destruído, abri o computador, selecionei um arquivo novo do Word e comecei a escrever de dentro do ódio profundo do meu ser. O texto que saiu começava assim:
“Acordei de manhã. Não sei dizer por que aconteceu naquele dia ordinário (outras ocasiões seriam mais apropriadas), mas o fato é que naquela manhã de chuva e vento que pedia um cobertor e um fogão a lenha com pantufas, pus o nariz para fora da porta e antes mesmo de cruzar o batente decidi que queria caminhar.
A decisão era inusitada; as manhãs são momentos de tranquilidade nos quais desenrolo devagar o novelo dos sonhos para entrar de novo na realidade, mundo, ou como quer que o chamem. Não naquele dia.
Intuindo o que aconteceria, vesti tênis em vez de chinelos, meias brancas até a altura do tornozelo, calça de moletom e prendi o cabelo num coque bem no alto da cabeça. O relógio já ia no pulso. Só tirei mesmo a aliança, que deixei na mesa de cabeceira, e com a clareza de quem enxerga o destino por uma fresta e se lança no pequeno cone de luz misterioso, coloquei o pé no primeiro degrau e saí, sabendo secretamente que nunca mais iria voltar para casa.”
No fim da manhã o ódio já tinha passado. Sempre passa. Mas não é isto que importa. O que importa é que gostei do texto, havia algo nele, e mesmo sem grandes reflexões filosóficas eu sabia por que. Ele vinha de dentro de mim. A situação horripilante com meu marido tinha trazido o sentimento de raiva para perto do fígado e a folha de papel, a mais benevolentes das criaturas, recebeu minhas impressões sem passar julgamento nem hesitar.
Ao salvar o arquivo, foi o Word que escolheu o título com as palavras da primeira frase: Acordei de manhã.doc. Não era um texto biográfico: o ódio tinha surgido no meu corpo e a personagem-narradora me emprestou o seu para que eu pudesse enuncia-lo. Pensei: este texto tem alguma coisa. De repente vira o meu próximo romance.
Às vezes escrevo dezenas de páginas sem nexo só para me aproximar de uma personagem. Gosto de escrever quando consigo escutar-lhe a voz e sentir-lhe o bafinho. Às vezes a personagem sou eu mesma: quando estamos juntas - personagem e eu -, o texto vive.
Numa entrevista, Suleika Jaouad diz que nunca se sentiu à altura de escrever em primeira pessoa. Era íntimo demais. Quando aquela voz narrativa se impôs durante a escrita do seu livro - Between Two Kingdoms, sobre sua própria experiência com a leucemia - ela entendeu que tinha um compromisso com o leitor. Devia-lhe toda a honestidade que conseguisse; a escrita seria um lugar para tocar a vulnerabilidade.
Na prática espiritual é parecido: os ensinamentos ganham vida quando os trago para perto do peito. Confio no que diz o meu professor, mas não é suficiente. Saber só com a cabeça não basta. A caixa craniana cheia de habilidades intelectuais é só um dos poderes humanos. É preciso baixar a guarda, abrir-se aos ensinamentos para que assim eles alcancem outras localidades da existência corpórea, entrem pela pele e caiam finalmente na corrente sanguínea, passando pelos pulmões, rins, músculos da perna.
O sangue a gente sabe: está no corpo inteiro.
O início da minha prática espiritual há uma década foi abstrato. Meu professor enunciava ensinamentos transcendentais e o que dizia era forte e lindo. Quando a mente estiver agitada, lembre-se que há um lugar em você que nunca se agita. Era demais, era revolucionário. Então quer dizer que há uma solução para o sofrimento do mundo? Então quer dizer que mesmo neste redemoinho dá pra encontrar um lugar estável dentro de mim?
Se pudesse, escreveria o lembrete num post it eterno e o meteria no bolso de cada uma das minhas peças de roupa: quando a mente estiver agitada, lembre-se que há um lugar em que você nunca se agita.
Ontem fui remexer uma pilha de restos de construção abandonada no fundo de casa. Entre as milhões de tarefas domésticas, decidi que era o momento de levar aquelas telhas velhas para perto da rua, já que um amigo se dispôs a vir de caminhonete para levá-lás ao lixo.
Estava sozinha. Carregando uma a uma, observei enquanto um sentimento de raiva foi invadindo meu coração. Sempre sou eu a fazer estas tarefas aqui em casa. Sempre sou eu levando peso, o Lee nunca está aqui para me ajudar, todo mundo que diz que vai dar força não aparece.
Deixei a raiva falando sozinha e comecei a trabalhar. As telhas portuguesas eram antigas e pesadas; só dava para levar duas de cada vez. Com um vestido de alcinha, fiz duas dúzias de viagem do fundo da casa à estrada. Meia hora depois eu chegava às últimas. Quando levantei o par derradeiro, uma nuvem subiu à altura do rosto. Um enxame de marimbondos. A casa que tinham feito ali última telha se desprendeu ao meu movimento e caiu no solo. Só senti as picadas nas costas, no pescoço, nos braços, nos dedos da mão direita.
Doía tudo.
A raiva que era visitante virou ódio e subiu até os olhos. Embaçou tudo. Trinta, quarenta picadas de uma vez. Uma reação alérgica? Eu não sabia mais nada.
Fui perdendo a visão num nevoeiro, a raiva agora era vendaval. Eu estava sozinha na minha casa no meio do deserto. Tomada pelas picadas, saí correndo. Não para fugir: eu era a própria raiva, preciso me vingar. Peguei a primeira coisa que vi na frente. A consciência se apagando com o choque alérgico, as picadas continuavam. Levantei a foice com toda a força do meu ódio e baixei até ter certeza que tinha destruído a residência alheia que já estava destruída.
A colmeia ficou esmagada no chão.
Corri para dentro de casa e enfiei um anti-alérgico goela abaixo antes da consciência apagar. O sono do remédio me pegou no sofá. Acordei duas horas depois com os dois gatinhos bebês que acabamos de adotar dormindo na barriga.
Quando a mente estiver agitada, lembre-se que há um lugar em você que nunca se agita.
Na experiência vivida, o ensinamento é mais difícil. É ali que o teste do samsara acontece. É ali que a gente erra, levanta, pede desculpas, começa mais uma vez, continua tentando. Uma página em branco, um documento novo do Word.
O texto é um receptáculo das mensagens que passam por mim. As ideias e os sentimentos vêm. Enquanto escrevo, posso vê-los alcançando meu campo consciente. Escrever é dar-lhes voz no meu corpo e ao mesmo tempo enxerga-los do lado de fora - cada um é um visitante. Vejo-lhes o rosto, prazer em conhecê-lo, sinto aquele bafinho, escuto o que me dizem. Dançamos uma valsinha, um axé, um cha-cha-cha, um tango, rostinho colado - uma lambada. Depois nos despedimos.
O registro do encontro é a folha de papel. Eles vão. Eu permaneço.
Pedi desculpas. Sempre gostei de abelhas. Acendi uma vela pela casa que destruí. Um dia, quem sabe elas me perdoarão. Um dia, quem sabe, aprenderei a me perdoar.
Enquanto isso, continuo escrevendo.
Notas
O texto da Elizabeth Matthis Namgyel que abre esta edição é uma tradução livre a partir do original porque só tenho a versão do livro em inglês. No Brasil, foi publicado pela Lúcida Letra. Você já conhece o catálogo incrível desta editora?
Setembro é o mês do Tour de France e da felicidade ciclística, e para celebrá-lo decidi trabalhar na re-edição do kindle d’O mundo sem anéis para deixar o projeto visual mais bonito e próximo do livro físico. O mundo sem anéis é meu livro de estréia - uma narrativa de viagem na qual conto a história dos três meses em que pedalei sozinha pela Espanha. Quando a nova edição estiver pronta, aviso aqui - enquanto isso a versão com texto integral continua disponível na Amazon pelo preço antigo (vai ser atualizado com a nova versão!). Deixo aqui uma das ilustrações do livro pra vocês:
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Para ler esta semana
A querida Ana Rusche, suas cartas de tarot e a lista das oficinas de escrita que ela vai dar no segundo semeste. Edição imperdível:
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na hora certa porque não aguentava cozinhar as mesmas coisas. Receitas de comidas frescas e não ultra processadas - é tudo vegano, mas eu mesma que não sou vegan amo.
Ah!, e que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
que a gente se perdoe um dia, amém.
<3
A raiva e o ódio são doidos. Inda bem que temos a folha branca a nossa espera. E assinei o Legume 💚