Entre todos os elementos, o mais sutil é o espaço.
Alguém me contou isto uma vez - que no sistema ayurvédico (se não me engano) há cinco elementos e não quatro, como fui acostumada a classificá-los. No budismo tibetano também são cinco.
Água, fogo, ar, terra, espaço. Olho para eles e dou-me conta só agora que deixando de lado este quinto, inteiramente novo pra mim, os elementos aos quais estou habituada são matéria (água, terra, ar) ou energia (fogo).
O espaço, não. O espaço é algo diverso. O espaço é onde a matéria descansa e a energia acontece.
Claro que podemos criar toda forma humana de localização e ponteiros
latitudes
coordenadas geográficas. Ele não as resiste. Só que o espaço, o espaço mesmo é um lugar vazio no qual estão ausentes as fronteiras separando um compartimento do outro.
O espaço é contínuo e o espaço é inaprisionável. Ninguém pode prender o espaço.
O espaço é simplesmente livre.
Entrei 2024 com a impressão de que alguma coisa andava muito errada.
Descobri o que era à medida que fui avançando na recém-criada disciplina de meditar duas horas por dia, todos os dias. Nas primeiras duas semanas, tudo que eu queria era que as duas horas passassem rápido para que eu pudesse começar a fazer coisas e viver a vida de verdade.
Vida de verdade = fazer coisas.
Então é isto. Minha preciosa vida humana virou uma expressão tridimensional de uma agenda cheia de projetos produtivos. 6am: acordar. 6.15: café com leite na mesa. 6.30: começar meditação. 9am: escrever por 45 minutos. 9.45 am: pausa para ir ao banheiro e tomar um chá. 10 am: fazer meia hora de yoga etc etc etc
ad infinitum. Cada minuto contabilizado. Comprei duas agendas diferentes, uma turquesa e outra cor-de-rosa, com a intenção de não deixar escapulir nenhuma meia hora à toa, aprisionar os minutos disperdiçados dentro de gaiolas destinadas a fazê-los chocar ovos de ouro.
É isso mesmo que a gente chama de vida?
O espaço é um componente muito presente nas tradições contemplativas, como o budismo. Estas tradições insistem que o nosso estado natural de mente pode ser comparado ao espaço
à vastidão ininterrupta. Há metáforas e histórias que os professores repetem para tentar nos oferecer uma imagem tangível a partir da qual possamos trabalhar, por exemplo
: nossa mente é o céu, os pensamentos e as sensações são nuvens passageiras.
Desculpe, senhor samsara capitalista, mas nem tudo que importa é sólido ou quantificável. Acho, aliás, que a Lista de Tudo que É Imprescindível para Ser Feliz inclui sobretudo itens imateriais, como o amor e o perdão.
O espaço é um atributo que permeia tudo sem ser objeto de ninguém nem de nada. Ele é a própria condição da existência. Precisamos da amplitude etérea do espaço para suportar o penso denso do
corpo.
O espaço, esta criatura tão onipresente e tão sutil que a gente não consegue nem ver. A respiração também é assim: acontece fazendo a vida passar sem pedir pra ser notada.
Pare agora e preste atenção no ar que entra. A inspiração cria um espaço enorme dentro de você.
A expiração é um alívio. O ar sai e é como se a gente se dissolvessse no espaço do mundo.
Adoro esta fala do meu professor:
pensa bem, olha como tudo é perfeito. A última respiração de um corpo é para fora, não para dentro. Tipo um relaxamento total, um deixar-se ir. Imagina se nosso última respiração fosse inspirando?
Numa newsletter de virada de ano, a Vanessa Guedes da Segredos em Órbita falou que estava tomando uma resolução radical de ano novo, na verdade a mais radical que poderia tomar tendo em conta a sua história pessoal.
Ela tomou a decisão de não tentar emagrecer.
Pois bem, do lado de cá estou indo no mesmo caminho da Vanessa. Decidi pegar um tapete mágico para sobrevoar a floresta de imensas responsabilidades e deveres que invento pra mim. Em fevereiro, tomei a decisão de não fazer
nada. Quer dizer, continuo escrevendo esta newsletter, meditando e vendendo as minhas obras. Fora isto
: espaço.
É que ando com muita saudade. Ando com saudade das coisas que precisam de frestas para entrar onde os meus planos tentaculares ocuparam. Ando com saudade, por exemplo
do imprevisível
do invisível
do molho que cai na blusa
do pneu da bicicleta que fura. Ando com saudade de poder falar com a pessoa que senta ao meu lado no correio sem ter que sair correndo e de assar bolo de banana enquanto os gatos dormem e eu leio um livro de ficção deliciosamente inútil. Sinto falta de um espaço dentro da minha cabeça onde não exista medo do aquecimento climático nem lista de mercado.
Já consigo ver o ponto minúsculo no horizonte crescer.
Ele está chegando mais perto. Dentro de alguns segundo eu e meu tapete mágico vamos aterrissar dentro de
mim.
Recomendações
Estes textos da Vanessa Guedes que eu mencionei aqui em cima:
A Ana falando sobre o que fazer quando a leitura se torna uma obrigação:
A Paula Maria escreveu um texto lindo sobre o seu modo modo analógico de habitar o tempo:
Fevereiro no Sofá
Entramos 2024 numa vibe antiprodutivista. No mês de fevereiro, todas as edições do Sofá da Surina vão acontecer em torno no tema Nada. Nesta primeira semana escolhi falar sobre Espaço para não esquecer do campo aberto e livre que existe por trás de todo entulho material e psíquico que tenho o hábito de acumular.
Na semana que vem vai ser a vez de um texto sobre A falta de centro e por fim, na última edição do mês, vou falar sobre um tema esquisito a que dei o título de A onipresença do invisível.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
eu ando irritadiça com coisas irrelevantes e muito incomodada depois que percebi isso. eu sabia que tinha a ver com o fato de não estar meditando há algumas semanas, aí hoje eu entrei numa tal "capela do silêncio" em Helsinki, inspirei, expirei, repeti, repeti... eu amei o espaço vazio da capela vazia, tão cheia de: ar.
li tua news no final do dia e era o que eu precisava para tomar uma decisão importante. obrigada por isso.
em 2024, te desejo todo o espaço para expirar que precisares 🩷
Eu, amiga, estou entrando no “espaço vazio” da aposentadoria. Olho estatelada para frente. Tento entender. Tento entender as perguntas: o que vc vai fazer agora? Como vc vai se ocupar? Cuidado, vc vai ficar deprimida. Começo a ter medo de mim. Medo do espaço, da mudança, do que parece que se apresenta como o vazio. E agora? O espaço na agenda. O espaço no fazer. O espaço nos encontros habituais que não acontecerão. O espaço da produção. O que eu vou fazer com esse espaço? Ele vai me sufocar? O medo é meu ou dos outros? Olho para esse espaço e me lembro do poema que vc postou e que guardei como mais uma oração (tenho a Litania do medo que decorei e usei muito, inspirada por vc e por Dune, que li por sua indicação). “A pé e de coração leve enveredo pela estrada aberta
Saudável, livre, o mundo à minha frente
À minha frente o longo atalho pardo levando-me aonde eu queira
Daqui em diante, não peço boa-sorte.
Boa-sorte sou eu... “ Walt Whitman
Vou rezar as duas orações tantas vezes até que as sinta saindo de dentro de mim! Obrigada!