Tudo bem por aí?
Dizem que quando a gente morre a vida passa diante dos olhos num flash. Observo mais de perto e acho que não é só na pré-morte. Escondidos nas dobras das roupas do dia-a-dia, esse tipo momento às vezes acontece de um jeito mais ordinário.
Meu gato deitado nas minhas pernas hoje à noite, por exemplo.
Está muito doente, descobrimos há pouco. É um gato selvagem que vive fora de casa e odeia ser agarrado, mas esta noite não ofereceu resistência quando o trouxe para dentro. Estava cansado. Arrumei o corpo no colo, patas esticadas sobre meu joelho, enrolado ali ele respirava com uma contração forte que fazia o corpo todo pulsar.
Parecia que tinha engolido o coração para dentro das costelas.
Não demorou muito assim; a respiração logo diminuiu de ritmo. Observei-o enquanto dormia. Os ossos dos quadris estão aparecendo, já não come, despreza a comida especial ou talvez lhe falte apetite por causa dos remédios.
Ele mudou com a doença. Fcou mole e menos atrevido. Antes de ser adotado, os vizinhos o chamavam Tiger porque é grande e dominante e aterrorizava os outros gatos, mas para mim nunca foi Tiger. Dei o nome do que ele é de verdade
: uma grande massa de azul-cinzento caminhando entre nós.
Quanto tempo Mister Gray passou no meu colo? Talvez uns quarenta minutos. Os pelos dele estão mais finos porque se lambe (será coceira? dor?). Toquei-lhe as orelhas e as patas, e durante aqueles quarenta minutos não pensei em nada.
Percebi que não era só ele. Minha respiração também estava mais calma.
De vez em quando me perdi imaginando se ele sentia dor ou como seria quando o câncer se espalhasse, mas esses pensamentos passaram rápido, substituídos pela presença azul que apagou todas as outras presenças e me deixou ali, sozinha no coração silencioso
do tempo.
Um passarinho, um cão, mesmo uma abelha passageira. Só quem nunca conviveu com eles dirá que os bichos são seres incapazes de compreender o que lhes acontece. Gosto desta passagem da Maria Gabriela Llansol (Lisboaleipzig 1):
"Tenho vivido muito com gatos, com um cão, plantas (e já vivi com
galinhas), com seres-humanos e com essa Presença insistente na minha
proximidade. O que aprendi é que todas estas formas da mesma imagem se
relacionam entre si e que a palavra é uma forma de comunicação rara, mesmo
entre seres-humanos, e não é, de modo algum, a mais fiável."
Tive a sorte de viver com os cachorros desde os sete anos. Toda uma geração de cães passou por mim. Por alguma razão, ao fim dos meus 30 anos pararam de vir os cachorros e a vida só me permitiu encontrá-los de passagem num restaurante, de passeio, na sala de espera de uma clínica veterinária. A vida retirou os cachorros de mim deixando um buraco de falta.
No lugar dele, há dois anos veio o Gato.
Não só o gato - as formas de amar do gato. As formas de acariciar do gato. As formas de pular do gato. O absoluto compromisso de ser quem se é
dos gatos.
Penso tudo nisso enquanto ele dorme.
Penso sobre a morte e sobre o medo da morte, entendendo pela primeira vez que são coisas diferentes. Penso que os bichos e as plantas e até mesmo os objetos inanimados nos ensinam sem palavras. Vejo os ensinamentos em volta de mim como se o ar estivesse coagulado de cores invisíveis.
Penso sobre o amor e seu segredo de suspender nossos dias numa leveza que torna real o que parecia impossível, embaralhando dor e beleza. Penso em tudo isso e sinto alegria de estar estar aqui apesar de todos as circunstâncias e argumentos contrários à beleza.
Penso nisso tudo mas não penso, como disse antes eu não penso. É sobretudo um estado de êxtase e de devoção que me vem do encontro com esse bicho maravilhoso chamado Mister Gray e chamado Vida.
Depois me viro para o lado e durmo, também.
InterAmar
- O amor interespécies está no ar. Pometo que este vídeo no qual Anna Breytenbach se comunica com uma pantera é a coisa mais bonita que você vai assistir hoje (só em inglês).
- Maria Gabriela Llansol (1931-2008) é uma autora portuguesa com uma obra enorme que só muito recentemente vem sendo redescoberta. Sua escrita rompe as fronteiras entre biografia e ficção, poema e prosa, diário e romance. Lê-la é uma vertigem, talvez porque na sua obra os limites entre as diferentes formas de vida também se apagam. Minha maior responsabilidade é contribuir para que um livro seja um ser, dizia. Seus diários foram publicados no Brasil pela editora Autêntica. A rede de TV portuguesa RTP lançou em 2021 um documentário sobre sua vida e obra que você pode assistir aqui.
- Já indiquei aqui e indico de novo: Relatos de um gato viajante, de Hiro Arikawa.
Você está caminhando numa floresta. Ela é verde e marrom, os bichos ainda dormem. Você para, olha em volta. Você lembra que não sabe pra onde está indo. Você continua caminhando.
(Trecho inédito do meu próximo romance).
Ah! E que todos vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,