#17. Historinhas de Halloween
Gosto de lembrar que o sinônimo de Morte não é Horror. Ela também tem algo de mágico
Tudo bem por aí neste mês mal-assombrado?
Do lado de cá, comprei uma abóbora no supermercado e pintei com cara de caveira. Tipo aquelas de Dia das Bruxas que aparecem nos desenhos animados dizendo tão pouco pra gente quanto os natais com neve, pinheirinhos e crianças encasacadas patinando no gelo.
Apesar da distância cultural, pintei a casca alaranjada e decidi que amo Halloween.
O outono começou por aqui, os dias estão escuros com uma tristeza bonita de tempo parado. Sentada na escrivaninha, olho minha abóbora com admiração. Nada me parece mais apropriado do que dividir a casa com uma carranca em meio à fúria melancólica deste outubro de 2022, em exílio e na véspera do segundo turno das eleições mais apocalípticas dos últimos 30 anos.
Carranca maravilhosa dos bons augúrios, você hoje me faz sonhar. Tenho certos pensamentos: o de que andamos tão caretas hoje em dia, despejando a positividade tóxica do Gratiluz uns nos outros como se a bondade genuína fosse algum tipo de script irreal de comportamento que está mais para uma história mal escrita do que para a vida de altos e baixos de um ser humano de verdade. Minha abóbora, entretanto, oferece uma saída para a prisão do bom mocismo contemporâneo. Atravesso a porta de casa com meu vestido cinza escuro, ponho meu batom vermelho para caminhar em São Martinho das Amoreiras, a caveira laranja de Hallowen (se joga, minha filha) me convidando para celebrar uma espécie de espaço liminal entre a vida e a morte. Um espaço de outono, pouco visitado, as franjas da vida, Meio-Aqui-Meio-Lá.
Ainda por cima tem o Dia de Finados chegando. E se é certo que a morte produz histórias pesadas e dolorosas, também é verdade que ela continua sendo o Grande Mistério. A morte tem um elemento mágico que eu gosto de lembrar, uma chave que me ajuda a desviar do sofrimento fúnebre como se ele fosse a única sentença possível diante da mortalidade.
A gente olha e ela olha de volta, sem conseguirmos entender com certeza aonde vamos chegar depois de atravessar a porta. É Halloween. A morte recusa nossos impulsos de adocicar a experiência com Gratiluz. A morte, esta dança. A morte, esta senhora. A morte, esta amiga. A morte, nem boa nem má. A morte, boa e má. A morte, um descanso.
A morte, esfinge. Decifra-me ou devoro-te. Incompreensível. Indecifrável.
Mamãe sempre me disse que é mais fácil sair deste mundo do que entrar nele.
-Este corpo pesa, por isso a última respiração é pra fora, filha.
Minha avó morreu na cama de casa, cercada das pessoas que amava. Aconteceu tudo num dia só. Eu estava lá quando a respiração começou a mudar e a fala da nona tomou outra direção: em vez de conversar conosco, vovó começou a caminhar por um mundo secreto que lhe pertencia com exclusividade, um mundo do qual nenhum de nós fazia parte. No meio do delírio, minha prima fez uma oração evangélica ajoelhada no colchão, levantou as mãos para o alto e apelou à glória divina. Admirei a verdade da sua fé; a minha é mais pálida.
Com o rosário em mãos, passei uma hora ou duas recitando Om Mani Padme Hung aos pés da cama.
No meio da tarde, meu tio médico e ateu me chamou de lado. Queria saber se espiritualmente faria algum mal sedá-la. Ela está sentindo dor? Ele disse que não. Se ela puder ficar consciente, melhor.
Minha avó esticava as mãos, tocando seres invisíveis. Dormia um pouco, continuava. Falava com pessoas que já tinham morrido, chamava a mãe. Não parecia alucinação, minha vó não tinha qualquer degeneração cognitiva. Aos 95 anos de idade, sua força de virginiana ainda a unia aos detalhes mais pequeninos deste mundo. Ela era sóbria até demais. Minha avó realmente conversava com pessoas que não conseguíamos ver.
Às 10 da noite meu outro tio pediu que fôssemos embora descansar; ele cuidaria dela pela madrugada. Minha mãe e eu chegamos em casa, fizemos um pão com queijo e meia hora depois recebemos a ligação. Ela morreu do jeito que sempre quis, de mãos dadas com o seu filho preferido.
Depois disso, mamãe me contou que perdeu para sempre o medo de morrer.
Estou reformando a ruína de uma antiga pocilga para fazer de casa. E acontece que agora, nas etapas finais de construção, passo os dias fazendo pequenos serviços por lá, a maior parte das vezes só, outras com meu companheiro.
O terreno fica no alto do morro, meio do mato, sem vizinhos exceto pinheiros, eucaliptos e corticeiras. Pela estrada de chão às vezes passam umas ovelhas, mas naquele dia passava para cima e para baixo um homem velho de bigode, um homem redondo numa motocicleta minúscula e barulhenta. Que que ele tá fazendo?, e meu companheiro respondia a única coisa possível sobre o Homem Esférico, não sei, darling, mas há de ser algum presságio ter o coveiro passando o dia inteiro na nossa casa nova.
A palavra que usam aqui é enterrador. O enterrador passando de motoca. Nosso vizinho mais próximo é o cemitério de São Martinho das Amoreiras, um canto maior do que eu imaginava para uma cidada tão pequena, com um portão de ferro na frente, uma cruz no alto. Os muros são branquinhos, impecáveis. Caiados como a nossa casa.
O Cemitério da Freguesia de São Martinho das Amoreiras trouxe a morte para mais perto da vida, insistindo em mantê-la à altura dos meus olhos. Temos que passar na frente do portão para chegar em casa, inevitavelmente. Além do enterrador visitante (o que ele faz na moto, ainda não descobri), temos também os funerais, e quando alguém está sendo enterrado às vezes não dá para passar com o carro. A gente fica preso em casa ou fora dela, respeitando o tempo que a morte leva para fechar a página ritual dos vivos, para poder seguir em frente com o nosso caminho.
Da varanda de casa, temos a vista de um vale imenso se abrindo. Ficamos a maior parte do tempo ali, olhando o verde indistinto das árvores se confundir com o cor de rosa do nascer do sol da primeira manhã e com o escuro sem luzes da noite. De construção humana, não dá pra ver nada, a não ser o ashram onde eu e o Lee vivemos, pra gente nunca esquecer por que veio pra cá, ele diz.
Além do ashram, dá pra ver um segundo edifício: o cemitério caiado, mais à esquerda. Sou mais outonal e escorpiana do que o meu marido, pra gente nunca esquecer por que veio pra cá
, eu respondo.
Ele faz que sim com a cabeça, e me passa uma xícara de chá.
Dançando com as caveiras
Programa poético-lindo-assustador-terrível de Hallowen: a série de animação Over the garden wall, lançada em 2014 para o Cartoon Network. Você pode ver o full preview do primeiro capítulo aqui (só em inglês).
Trilha sonora de outono: Harvest Moon, do Neil Young.
Histórias lindas de morrer (Ana Cláudia Quintana Arantes) e With the mind of dying (Kathryn Mannix) são dois livros escritos por médicas especialistas em cuidados paliativos que me ajudaram no longo caminho de fazer as pazes com o processo de morte. São lindos, deliciosos de ler e esquentam + congelam o coração, os dois ao mesmo tempo. Bem halloween.
Six feet under (em português, A sete palmos) sempre será minha série de tv preferida. A história gira em torno das desfuncionalidades uma família dona de uma casa funerária em Los Angeles, e é permeada de um tom surrealista que anda de mãos dadas com uma sensibilidade sem fim. Tipo: imperdível.
… e um exercício de escrita…
… que encontrei no deck de cartas da minha musa da escrita criativa, Natalie Goldberg. Coloque o alarme para dez minutos, abra o caderno ou o arquivo do computador, e durante este tempo não tire a caneta do papel (ou a mão do teclado). Escreva mesmo que seja difícil, mesmo que as ideias que te venham pareçam ruins, mesmo que não tenha nada pra dizer. O tema é: “para o quê você vai ter que dizer adeus quando morrer?”
Depois me diz nos comentários o que descobriu.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima, e bom voto pela democracia neste domingo,
Gostei demais! Li hoje... adoro deixar textos pra depois, eles chegam em bons momentos!
Que texto lindo! Sempre ouvi dizer que o bom de ser vizinho de cemitério é porque a vizinhança era tranquila, mas nunca parei pra pensar que haveria tanto movimento dos vivos!