Há pouco tempo li um livro que relatava a existência de dezoito infernos. O livro explica que a maior parte dos infernos é quente (alguns deles são gelados), e em todos há um festival de punições terríveis infligidas às vítimas por milhões de anos. Geograficamente, os infernos se amontoam verticalmente feito salas empilhadas umas sobre as outras, possivelmente nos subsolos do universo.
Segundo o livro, cada inferno tem o seu jeito de ser. Há um, por exemplo, no qual os habitantes fazem guerra, se atacam, morrem e depois revivem para começar tudo de novo num ciclo interminável de violência e vingança. Na última sala, lá embaixo, está o inferno mais horroroso de todos. É reservado para aqueles que cometeram os crimes que geram retribuição imediata.
Li sobre os infernos aqui no meu atelier nos últimos dias de dezembro. Confesso que foi uma leitura confusa que me causou rejeição imediata. Não, obrigada, já tenho culpa e medo de sobra.
Acontece que as descrições de inferno não me saíam da cabeça. Dei-me conta, enquanto lia, da onipresença do inferno na nossa vida: os relatos infernais estão em toda parte, desde a expiação cristã que ouvi na escola à Divina Comédia e aos relatos do Swedenborg, passando no caminho pelas histórias do Sandman (personagem do Neil Gaiman).
Durante o mestrado, escolhi pesquisar genocídio. O ano era 2007 e eu tinha uma fascinação inexplicável por compreender de onde vem e como se estabelecem situações de extrema violência. A pesquisa foi uma experiência de imersão não apenas em casos dolorosos de violação de direitos humanos, mas também nas reflexões de pessoas corajosas que tentaram compreendê-los, como a minha querida musa Hannah Arendt no seu As Origens do Totalitarismo.
Hoje em dia posso dizer que meus dois anos de mestrado foram uma expedição de reconhecimento ao reino dos infernos.
Mas voltemos ao livro. Tirando fora moralidade e medo (não, obrigada), será que as descrições de inferno que ele traz me servem de alguma coisa?
Sei lá, nunca dá para saber. Vai que servem? Abri espaço em mim com relutância, trouxe o livro para o coração, afastei o medo do jeito que consegui e sentei com as palavras na almofadinha de meditação.
Quando levantei, uma semana mais tarde, entendi os ensinamentos do meu jeito. É sobre três aspectos deste entendimento muito pessoal que quero falar nesta edição.
1. O inferno é uma expressão do potencial criativo da mente
As descrições do inferno tiveram um papel pictórico importante para a compreensão da minha mente: elas me trouxeram uma representação vívida do ambiente mental que sou capaz de criar quando estou consumida por sentimentos de raiva. É que o inferno - diz o livro -. é um domínio no qual ódio é o sentimento prevalente.
De uma certa maneira, então, o inferno é o desdobramento da raiva. Tudo no inferno mental parece sólido e visivelmente verdadeiro. Em ocasiões nas quais minha atenção está fixada no ódio por alguém/algo, inevitavelmente acredito que tenho razão, que os outros estão inequivocamente errados e que o mundo se resume ao estreito território da polaridade ameaça-agressão.
Entre os dezoito, fiquei particularmente fascinada por aquele inferno no qual as pessoas lutam, morrem e revivem para começar uma nova batalha. Era uma descrição familiar porque já me senti assim, absorvida pela vontade de devolver aos outros o meu próprio sofrimento. Isso aconteceu principalmente quando terminei relacionamentos. Todas as vezes em que entrei neste estado interno, experimentei um beco sem saída no qual a vingança só deixava tudo mais enroscado. O buraco ia ficando cada vez mais fundo e nunca, nunca mesmo teve a capacidade de me remover da dor.
De um jeito ou de outro, tive a sorte de sempre encontrar uma corda me alçando instantaneamente para fora do calabouço. Esta porta para escapar geralmente me vinha por um amigo apontando outra direção
: quer vir tomar um chá aqui em casa? Vamos no cinema? Preciso de ajuda para levar o gato no veterinário hoje à tarde. Deixa disso, vamos falar de outra coisa.
A gente cria reinos e os habita. A gente também cria os cidadãos do nosso mundo subterrâneo; no reino dos infernos, tudo acontece através das lentes do nosso ódiozinho de estimação. Os habitantes do meu mundo raivoso são pessoas que não gostam da mim e que me traíram, todas inventadas como personagens rasos e simplistas de uma face só - aquela horrível de ser exatamente quem eu odeio.
Depois de contemplar o livro, passei a tomar o reino dos infernos como uma imagem da minha própria mente. Entendi assim: este é o tipo de lugar onde eu moro quando estou enfiada na raiva.
2. Se o inferno é um lugar, então dá para entrar e sair dele
A outra coisa importante de ler sobre inferno foi ver que ele não é exatamente uma condenação eterna qiue sofremos porque somos culpados de algo imperdoável, e sim um estado de mente que pode ser visto como um lugar.
A boa notícia é que um lugar é um espaço no qual se entra e do qual é possível sair. Não o mais agradável, muito mais para uma sala de estar do horror.
Mas se o ambiente mental muda, o inferno também é capaz de dissolver-se.
3. Conhecer o inferno é conhecer a raiva. Sair do inferno é usar instrumentos para lidar com a raiva
Por fim, me aproximar do reino dos infernos naquele livro foi uma forma de conhecer o sentimento de raiva, me aproximar dele, observar o seu potencial destrutivo. É isso que as descrições minuciosas de torturas ilustram - os limites que alguém pode ultrapassar quando está imerso no ódio.
Embora paradoxal, esta contemplação detalhada sobre uma emoção tão aflitiva me deu esperança. Assim como tudo que existe, a raiva passa. Ela também é impermanente. Ter instrumentos para lidar com a raiva e transformá-la, portanto, é uma forma de lidar com o reino dos infernos.
Acho que é isto. É algo pequeno, eu sei, mas que me fez pensar bastante.
Há muitas coisas sobre inferno que não sei e que continuam uma pergunta aberta. Por exemplo: inferno existe mesmo? Não sei se existe. Na verdade este tema do Grande Inferno não me interessa muito; estou mais curiosa no inferno que podemos viver (e transformar) dentro deste corpo físico.
Lembro, ainda, de situações de violência na qual somos colocados involuntariamente. Em circunstâncias assim, somos vítimas das projeções mentais terríveis de outros e a solução não está mais em lidar com a própria raiva, mas em encontrar meios para se desvencilhar daquilo. Este também não foi o tema das minhas reflexões, que acho que merecem um outro caminho.
Por último, não dá para esquecer que existem várias formas de sentir raiva - incluindo aqui aquela força irada que coloca limites e diz não de um jeito muito saudável. Não é deste tipo de ira que estou falando neste texto. Meu objeto de trabalho infernal nesta edição é a raiva rancorosa, a vontade de se vingar, o desejo de fazer o outro se fuder, a raiva areia movediça.
Me conta: você já sentiu um tipo de raiva assim?
Notinhas práticas
Já que a ideia é lidar com os infernos mentais, aqui estão algumas dicas preciosas de gente que eu respeito:
O vídeo de 3 minutos da Khandro Rinpoche sobre Inferno no budismo (legendas em portugês disponíveis).
O vídeo do Thich Nhat Hanh explicando para as crianças como lidar com a raiva (legendas em português disponíveis):
Neste artigo, a monja budista Pema Chodron fala de um jeito super prática sobre a paciência como antídoto para a raiva (artigo em inglês).
Ah! E que vocês sejam felizes sempre. Até a próxima,
A carapuça serviu, pra variar. Obrigada Surina querida 💗
senti na pele o desejo de vingança, e quanto mais pensava em me vingar e como me vingar mas eu adoecia e me sentia mal! é o que disse Buda ( eu acho ) a raiva é como tomar um veneno e esperar que o outro morra ou algo assim... enfim temos que passar por esse sentimento, literalmente sair desse inferno pessoal e ir para outro estagio mental mais equilibrado e pacifico... o ceu e o inferno são aqui e agora! <3