Tudo bem?
Quero contar que ontem de manhã abri a página da Wikipedia enquanto tomava café com leite e descobri por acidente que um homem que eu amo morreu há mais de um ano.
A notícia me causou profunda tristeza, apesar de profunda tristeza ser uma expressão que não diz muito. Era o mesmo sentimento de quando me contaram da morte do David Bowie, do Leonard Cohen e do monge vietnamita Thich Nhat Hahn: um suspiro de agora vou ter que encarar o mundo sem você misturado com obrigada por ter dividido a face da Terra comigo.
O homem que eu amo e que morreu em fevereiro de 2021 chama-se Lakshmana Swamy. Nunca o conheci pessoalmente, mas tentei. O ano era 2019, o país era a Índia, a pessoa era eu. De mochila roxa e tênis esportivo rosa saí dos Himalaias, no norte, até o estado de Tamil Nadu, no sul, só para ter a chance encontrá-lo. Três dias, um ônibus, um avião e um táxi mais tarde cheguei finalmente à cidade de Tiruvannamalai, onde deixei meus pés caminharem com grandes esperanças até o portão da casa onde ele vivia.
Aluguei um quarto na cidade e repeti a visita matutina cinco dias seguidos, sempre no mesmo horário.
A vida, entretanto, ignorou as minhas vontades.
Nossos olhos não se cruzaram, ele nunca apareceu no portão para me ver.
Lakshmana Swamy foi um santo que passou grande parte da vida recluso. Dizia que era destino mais do que escolha, garantindo que mesmo sem sair fisicamente da própria casa um ser humano iluminado é capaz de ajudar seres em todas as direções do tempo e espaço.
De vez em quando Swamy saía do seu retiro e aparecia publicamente por alguns minutos para dar darshan – uma espécie de benção por meio do olhar - aos que meditavam na frente do seu portão, entre 9 e 10 da manhã. Volta e meia também oferecia darshan ali Saradamma, sua estudante e sucessora que despertou em 1978 e que ele adotou como filha.
Os dois viveram na mesma casa e ensinaram juntos por mais de 40 anos.
Cada um tem sua obsessão. Patti Smith e Nathalie Goldberg viajam para visitar os túmulos e lugares frequentados por seus escritores preferidos. Quanto a mim, gosto de ler sobre a história de pessoas que se iluminaram, conhecer monastérios e cavernas onde fizeram suas práticas, encontrá-los pessoalmente se ainda estão neste planeta.
- Qual sua prática espiritual?
, alguém pergunta. Respondo que fazer contato com outros humanos que alcançaram o potencial pleno da existência é uma delas.
Minha peregrinação nem sempre é geográfica. Quando perco a esperança ou começo a achar que viver é sem saída, abro um livro, vejo um vídeo, compro uma passagem e mergulho no conto de fadas.
Acredito nas histórias com todo o coração, incluindo as partes mágicas de assustar os incrédulos. Meu coração fica leve, nossas mentes se misturam um pouquinho. Sei que ele está ali. Sei que ele está aqui. Par um ser humano iluminado tudo é possível. De dentro de casa e sem dizer uma palavra, Lakshmana me olha através da parede
- Ainda bem que você veio, querida. Há anos eu estou te esperando.
Inspiração
- Nesse capítulo da série Tales of Palakottu (só em inglês), David Godman conta a história de Lakshmana Swamy e Saradamma. A mesma história e os ensinamentos destes dois seres maravilhosos também está aqui no livro incrível No mind - I am the Self - esgotado e difícil difícil de achar, mas que vale cada palavra. Mas dá para ler um trechinho aqui, no site do autor (em inglês).
- Brilliant Moon, um filme com pedaços de animação que retrata a história de Dilgo Khyentse Rinpoche.
- Apaixonado pelo mundo - a jornada de um monge pelos bardos do viver e do morrer, uma autobiografia de Mingyur Rinpoche em que ele conta da sua aventura de sair quatro anos e meio num retiro caminhando no qual teve um insight profundamente transformador sobre a natureza da existência.
O guru é um barco
: você sobe
ele te atravessa para a outra margem.
O guru não é o outro lado
com ele é mais fácil chegar.
O professor de natação da minha mãe, por exemplo.
Nas primeiras aulas ele teve que entrar na piscina junto
porque ela tinha medo de se afogar
apesar de dar pé.
Eu tinha trinta e três anos quando conheci meu professor.
Ela tinha cinquenta e quatro.
Depois que começou a fazer natação, minha mãe nunca mais teve medo da água.
(Dos meus diários de viagem à Índia. Este trecho é parte do meu novo romance, ainda inédito, que será lançado este ano).
Ah! E que todos vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,