Uma nuvem nunca morre.
É outono no hemisfério norte. Olho para o céu com o caƒé com leite na mão à procura de um sinal de chuva, mas não encontro nada. A resposta vem de baixo:
Se você olhar para a xícara, a nuvem está dentro.
Boiando no quentinho marrom. Intacto, encontro o insight de Interser. O café com leite é o céu que recebeu o calor do sol que fez evaporar o lago que virou nuvem que choveu a água que entrou na chaleira e dentro dela, junto do tempo e do coador, parou aqui.
A nuvem do céu vive dentro da minha caneca.
Quero falar de Interser porque é uma palavra que tem o poder de tornar a vida ordinária suportável. É como a morte, essa senhora que quando encontramos nos dá perspectiva do que realmente importa. Se pudesse abrir esse momento como se ele fosse uma caixinha, o que você encontraria?
Quando entro pela porta do interser, desaparece a cadeira na varanda. Desaparece a mulher de 1.62m, nascida em Belém, 41 anos. Dentro do corpo encontro minha mãe e meu pai, as patas do cachorro que morreu ano passado, a grama onde o Buda sentou às 7:45 para dar os ensinamentos que 2500 anos depois voaram através do tempo e das palavras escritas num papel até chegar em mim. Sou imediatamente transportada para o meu lugar verdadeiro,
essa fatia de pão que você come contém o cosmos inteiro.
Esse mês Thich Nhat Hahn, o monge zen-budista que formulou o insight de Interser, fez noventa e cinco anos. Exilado na França por trinta e nove, a ordem monástica que criou junto de seus alunos leva o nome do ensinamento que, segundo ele, penetra as fronteiras mais profundas da realidade. Ordem do Interser.
Sentado num salão com um grupo de crianças, Thay - como é chamado carinhosamente - conta que mistura chá na tinta toda vez que vai fazer caligrafia. A nuvem que está no chá vira uma obra no final. Ele levanta a folha e mostra o que escreveu
as lágrimas que derramei
ontem
viraram chuva
Interser, então, vai além da continuidade entre as formas. Não é só a nuvem que vira água que se transforma em sangue dentro de nós. A tristeza pingando do olho também. Interser fala dessa linha que liga nossa presença com tudo que acontece ao redor num nó infinito de coexistência.
Estamos dentro uns dos outros.
O ensinamento vai em outras direções que vou deixar para outra vez porque agora quero ficar aqui, neste lugar que é o da importância da nossa presença para o mundo. Penso nisso agora que Thay já não está mais perto. Sempre tive esse sonho de encontrar com ele, o monastério é pertinho, no sul da França, mas já não dá mais. Em 2018 ele deixou o exílio e partiu para fechar o círculo que começou no Vietnã, dentro do templo em que foi ordenado monge. "Quero viver no Vietnam, na terra dos meus professores ancestrais. oferecer minha presença aos irmãos de ordem monástica (...) até que este meu corpo se desintegre", ele escreveu numa carta em 2018.
Um pedaço de mim sente raiva por ter perdido tempo. Outro pedaço aceita, sabendo que não existe falta. Thay e todas as coisas que nos atravessam vivem dentro. Quer a gente queira, quer não
uma nuvem nunca morre.
Tudo Thay
- Uma nuvem nunca morre: você encontra aqui o vídeo em que Thich Nhat Hahn apresenta o ensinamento sobre Interser para as crianças (legenda em português disponível).
- Walk with me (Max Pugh e Marc J. Francis) é um documentário de 2017 que acompanha a vida da comunidade de Plum Village, o monastério francês onde Thay viveu até 2018. O filme desdobra o tema da atenção plena - a habilidade de se concentrar no momento presente -, e vai costurando a história com passagens dos diários de Thich Nhat Hahn
- No site da Livraria Vozes você encontra o catálogo de livros escritos por Thay que foram publicados no Brasil. São muitos; das leituras que fiz, este é o meu preferido.
the tears
i shed
yesterday
have become
rain
(Thich Nhat Hahn, 1926 -)
O corpo da natureza é o nosso corpo. Zen nature é uma série em andamento a partir da observação da natureza e inspirada em Interser. Sobre o papel-cartão cinza as linhas são as mesmas, as cores se repetem, mas cada uma faz seu movimento em uma forma diferente. O Enso brilha, esse círculo da iluminação, relembrando do que somos de verdade.
Ah! E que todos vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,