Encontrei com ele na casa dos meus pais em janeiro, enquanto fazia faxina no sótão. Estava esquecido num papelzinho dentro de uma agenda antiga. Fazia frio em Curitiba apesar do verão. De pé ali, desdobrei com cuidado a folha amarelada e olhei a data - 2002. Já faz vinte anos?
Faz.
O poema estava escrito a lápis, com a letra da menina que um dia eu fui. Li em voz alta, reconhecendo os versos de um jeito estranho. O texto era familiar, mas eu não conseguia saber se era meu ou de outra pessoa. A única coisa que eu sabia é que era lindo.
Foi mamãe, ouvindo do canto da sala, que me respondeu
: pode até não ser seu, mas este poema é você
Minha mente fez um vácuo de estranhamento, o mundo agora paralisado. Naquele instante. Do Grande Além ouvi tocando dentro de mim uma música antiga da Rita Lee
o que você quer, o que você quer de verdade
estará com você
quando você se lembrar
O que você quer estará
em você
quando você não se lembrar
, e foi assim que percebi que a gente vira tudo o que ama.
(E o que odeia também, mas esse é capítulo para outra Newsletter).
Quando dá ensinamentos, meu professor de meditação senta na poltrona ao lado de uma mesinha. A mesinha sempre está lá, e nela ficam um copo de água e um vaso de flores. Fica, também, um porta-retrato com duas aberturas onde ele mantém as fotos do seus próprios professores. Continuo aos pés deles, ele costuma dizer, embora o corpo daqueles mestres não esteja mais aqui.
Os corpos foram, os mestres continuam. Mas não só na vida espiritual - em outros cantos também. "Nosso trabalho é escrever... de modo que toda a linhagem de escritores flua através de nós", já tinha notado a escritora Natalie Goldberg ao longo de sua trajetória combinando escrita e zen-budismo.
A ideia de linhagem tem a capacidade de abrir meu coração para um abraço invisível de gratidão. Através da Linhagem consigo romper o cordão de isolamento que os 2 anos de pandemia instalou na porta de casa: um fio transparente nos liga. É um fio que me diminui e me aumenta, atravessando as fronteiras do tempo e do espaço para me recolocar num universo expandido no qual minha voz só existe por causa da voz de muitxs.
Hoje acordei assim. Pensando que todo salto contém todas e todos que nos ajudam a saltar.
E o poema?
Bom, o poema não fui eu que escrevi. Nem foi escrito pela menina que eu era vinte anos atrás.
É do poeta paranaense Rollo de Resende (1965-1995). Copiei em 2002 porque me comoveu. Vinte anos depois, continua falando comigo.
Nunca conheci Rollo de Resende, mas seu destino conheço. Ele continua vivo dentro e através de mim.
(a íntegra do poema está aqui embaixo)
A arca
estou lendo um livro mas não me estou livrando
dele. cada página virada cobre-me uma camada
leve e resistente de papier-marché.
uma vontade maior me fala.
eu fico quieto ouvindo as coisas que devo
escrever. eu ouço com a ponta dos dedos.
eu também vou escrever porque quero conhecer
o mistério que sou, o mistério que é cada coisa
viva, toda coisa que se move.
estou transferindo a biblioteca do meu quarto
para dentro de mim, eu estou mudando o mundo
para dentro de mim.
eu viajo, saio do meu país para encontrar
as melhores coisas para levar para dentro de mim.
(Rollo de Resende, poeta paranaense, 1965-1995. Alguns poemas dele você encontra aqui, nesta edição da Revista Mallamargens)
Ah! E que todos vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,