Meu medo começou pontualmente no dia 24 de abril de 2021 às 17:12 horas. Era um dia meio frio de primavera e a temporada de flores amarelas nos campos do Alentejo apenas começava. Eu estava sozinha na motor home do meu marido fazendo yoga e naquele instante exato o medo se anunciou. Desde então, passei a sentir muito medo.
Mas quero explicar que a tarde do dia 24 foi só o momento do anúncio, uma voz dizendo
gostaria de informar que partir de hoje você vai sentir medo
Não entendo a natureza daquela voz porque não falava em palavras. Era mais uma intuição.
Na noite daquele dia, quando já estava pronta para dormir, o medo que tinha se mostrado no final da tarde acordou trazendo consigo um ritual completo que se tornaria familiar nos próximos anos de minha vida: taquicardia, falta de ar, sentimentos negativos, os piores cenários possíveis para o futuro.
Algumas pessoas sentem que vão ter um ataque cardíaco quando têm medo, mas não foi bem isso que experimentei naquela primeira noite. O meu era um pavor de que o corpo fosse virar um barco desgovernado sem ninguém para dirigi-lo. Algo assim nunca tinha me acontecido antes. Tive medo de ficar maluca, e embora não houvesse nenhum sinal de dissociação, alucinação ou psicose, o medo trazia uma mensagem muito precisa
uma coisa terrível vai acontecer se você perder o controle.
Depois daquele dia comecei a sentir medo o tempo todo. O medo tornou-se locatário permanente desta casa chamada
eu.
Pouco comuns, mesmo, passaram a ser os momentos em que eu não sentia medo.
Era como se minha vida fosse uma carta de baralho com dois lados. Até os quarenta, vivi com a carta virada para o lado sem medo. De vez em quando batia um vento, a carta virava rapidinho e eu sentia um pouco de medo mas logo eu voltava a ser eu, e o Eu daquela época era alguém sem medo.
Depois dos quarenta, bateu um vento, a carta virou e ficou empacada num naipe diferente. Desde então tornei-me Eu com medo.
Só de vez em quando, quando estou distraída, é que não sinto medo.
Por exemplo: se estou preparando um bolo ou fazendo uma comida complicada ou envolvida na jardinagem. Quando fico presente com essas coisas, meu medo some.
Quer dizer: mais ou menos. Do nada, um pensamento pode surgir
meu Deus, que medo
, e imediatamente recupero aquela parte de mim que estava faltando - o pavor.
É um fenômeno absolutamente ilógico, claro. Eu ali, jogando esterco no tomateiro numa manhã de sol com o gato e de repente já estou morrendo de medo de Deus-sabe-o-quê.
Outra coisa do meu medo é que ele começou com aquele terror de perder o controle numa noite primaveril. Aos poucos, sem que eu notasse, aquele medo primordial foi criando umas raízes fininhas de mini-medos. À noite, por exemplo, passei a sentir medo de ir ao banheiro.
Quando caía um galho da árvore e fazia barulho, eu sentia um medo descomunal, um medo que era como se um urso fosse me atacar. Comecei a ter medo de fantasma
de alienígenas invadindo a terra
do avião do meu marido cair numa das suas viagens
dos meus gatos serem comidos por um bicho
de acabar a água do mundo com o aquecimento global
de um dos meus gatos desaparecer
de fazer uma cagada imperdoável e ser infeliz pra sempre
de todos os tipos de faca.
Nenhum deles faz sentido, mas o corpo não precisa de sentido.
O corpo faz o que
quer.
Agora o medo sempre está lá, estável e ordinário.
Às vezes, entretanto, rolam umas festinhas. São as crises, e durantes estas crises meu corpo fica muito acordado sentindo medo de (literalmente) tudo.
Essas crises são sazonais, como ondas. De vez em quando vêm por uma semana ou duas
depois vão embora.
Não vou mentir; estas crises são terríveis. Elas eram especialmente tenebrosas no começo, tempo em que eu não sabia quando viriam ou principalmente quando iriam embora. Será que vou ficar neste estado para sempre?
A perspectiva de ficar com aquele medo no corpo me dava mais
medo.
Daí comecei a ter medo das crises de medo.
O medo é diferente do ódio, que é rápido e quente. O medo é um sentimento polar e pesado; você fica gelada por dentro.
À medida que o tempo passou, descobri e aperfeiçoei estratégias para lidar com o medo. Escolhi ferramentas que me pareciam mais familiares, ou seja, técnicas de meditação.
Testei várias e percebi que algumas me ajudavam. Em especial percebi que ficava muito calma quando ouvia os vídeos do Thich Nhat Hanh.
Passei a fazer o que ele dizia nos vídeos. Aprendi a ficar quieta com o meu medo, a prestar atenção à minha respiração durante as crises. E aprendi a não resistir ao medo, embora esta parte às vezes seja difícil.
O medo continua ali, mas algo maior e mais calmo também está comigo.
Minha respiração se acalma e a crise passa.
O medo dorme quieto em mim sob um cobertor cinza-azulado.
Confesso que tenho gostado de sentir este medo. Especialmente nos últimos seis meses, quando me acostumei com ele e consegui observá-lo com um pouco mais de distância.
É como se eu tivesse tido a chance de conhecer um parente terrível que sempre evitei, um parente que vem dos mesmos antepassados e que é um pouco Eu.
Acho que o medo me conta um pouco da história de quem sou. Apesar de ainda querer que ele vá embora
sinto que, quando vem, o medo me revela aspectos que passei a vida enfiando embaixo do tapete. Outra parte boa do medo é que ele me ajuda a meditar com muito discernimento
: este é o medo
: esta é a mente com medo
: este é o meu corpo com medo
: esta sou eu.
O meu medo também me ensinou que a mente e o corpo funcionam juntos. Nossos pensamentos viram fenômenos corpóreos, tipo taquicardia e caganeira. Nossos fenômenos corpóreos, tipo a respiração difícil, criam mais pensamentos de medo.
Aprendi isto de um jeito íntimo e inequívoco com os ataques acontecendo nas minhas vísceras, de modo que ninguém, nunca, poderá me convencer que corpo e mente são partes estanques separadas entre si.
Mamãe acha tudo muito estranho:
-Quando era criança você não tinha medo de nada.
Depois que cresci, entretanto, acho que fui engolindo um monte de coisas. Raiva, frustração, medo de dizer não, angústia, vontade de sair correndo, ressentimento, tristeza sempre que eu fazia alguma coisa errada.
A gente se engole pra agradar os outros. Afinal de contas, menina, você precisa
ter um corpo magro com peitos grandes e também aprender a se comportar, a cruzar as pernas bem fechadas pra não mostrar a calcinha e você também precisa saber que a vida é dura e que não dá pra fazer tudo que você quer, nem ter sonhos muito elevados porque o destino de quem sonha alto é cair e pra não se machucar é preciso ficar bem protegida. E ainda por cima tem o seu coração que vai se partir um milhão de vezes em um milhão de pedacinhos, os projetos de vida que não são seus mas que você herdará de alguém, não faz isso, pensa na sua carreira.
São tantas coisas engolidas que um dia elas cansam de ficar escondidas e reaparecem assim, num grande
Medo.
Confesso que me acostumei a viver com o medo. Se ele fosse embora, acho que até seria estranho. Seria como estar no corpo de outra pessoa ou jogar baralho com uma carta virada do avesso.
Ninguém é muito perfeito mesmo. Quero ir até o fundo do meu medo. A gente é inocente como o corpo, a gente só pode ser quem
é.
Notinhas
Vamos para aquele disclaimer básico: este é um texto pessoal que não reflete nenhum tipo de conselho médico. Se você sente que está enfretando problemas relacionados à saúde mental, como ansiedade ou pânico, o melhor é procurar atendimento médico e terapêutico apropriado.
Aqui está um vídeo de meditação de Mingyur Rinpoche direcionado para ansiedade e aqui um artigo no qual ele conta sobre as crises de pânico que sofre desde a infância e como as técnicas de meditação o ajudaram a atravessá-las.
As ilustrações desta edição fazem parte de uma série longa que produzi ao longo do ano de 2016 no qual uma mulher sem cabeça interage com o roxo-escuro e o amarelo-luz. As obras da mulher sem cabeça ainda estão entre as minhas obras preferidas. Elas estão à venda em formato fine art print (alguns originais também ainda estão disponíveis em tamanho 30X30cm).
Ah! E que vocês sejam felizes sempre. Até a próxima,
Quanta sensibilidade, quanta beleza, que percurso bonito você percorreu. E morri de amor por suas ilustrações 🤍
Lindo, lindo. Obrigado por escrever ♥️