Noite passada sonhei que flutuava e que do alto do céu conseguia observar a minha mente.
Vista de cima, minha cabeça por dentro era um campo cheio de árvores no qual pensamentos, memórias, emoções, rancores, projetos e até sentimentos desconhecidos apareciam para passar um tempo. Vinham sozinhos nos seus próprios veículos, abriam o porta-malas, montavam a barraquinha, ficavam o quanto queriam, depois iam
embora.
Alguns passavam um par de noites, outros meia hora, mas o fato é que minha mente bombava – era gente indo e vindo sem parar. Prestei atenção numa sensação infantil de abandono, por exemplo, que apareceu de bicicleta. Chegou discretamente e montou uma tenda no canto, longe dos outros turistas. Não ocupava muito espaço, mas pela desenvoltura com que se movia percebi que era uma visitante habitual e que tinha grandes pretensões. Vim passar uma temporada longa e você vai ter que me aguentar.
Acordei com a sensação de que estava caindo num poço sem fundo. Meu Deus, darling, tá tudo bem?, meu marido me cutucou o ombro, é aquele pesadelo de ser abandonada de novo? Vou abrir a porta para você respirar melhor.
E correu para me fazer um chá de funcho. Era de madrugada, a luz dos postes entrava fraquinha pela fresta. Fui juntando as peças, esta é a cama da nossa motor home, ali está o fogãozinho, a paisagem de fora não é a minha mente.
- Estamos no Camping Serrão, sweetheart.
Aliviada, voltei a dormir antes do chá esfriar.
Conheci meu marido há três anos neste camping da costa portuguesa. O Lee é do tipo brega-romântico e nossa casa no sul de Portugal é um lugar sujeito a terríveis ondas de calor, por isto todos os verões voltamos ao Camping Serrão um pouco de férias, um pouco para comemorar o aniversário do nosso encontro e um pouco como refugiados climáticos.
Lee checa a previsão do tempo regularmente. Quando identifica que um pico extremo de temperatura está a caminho, avisa: quarta-feira da semana que vem vamos para o Serrão e ficamos lá até a outra quinta.
Compramos comida, trocamos a roupa de cama. Organizo minha maleta com tintas e pincéis, escolho livros, enfiamos tudo na nossa van e nos escondemos no camping por uma semana ou dez dias até o clima melhorar.
Exceto pelo meu marido, ninguém ama tanto o Camping Serrão como eu.
Indiquei-o para vários amigos, mas eles nunca voltam muito entusiasmados, não tem nada de interessante para fazer lá.
É um pouco verdade.
Acho que gosto dele porque se parece com a imagem que tenho da minha mente: só um espaço aberto cheio de eucaliptos para fazer sombra aos campistas e dois grandes edifícios de toalete com chuveiros que funcionam bem, mas não são refinados.
Diferente de campings mais chiques que contam com áreas privadas e sauna, o Serrão é bem ordinário.
Este ano tivemos uma surpresa no caminho. Atravessamos com a camper por entre o fogo; o maior incêndio de Portugal acontecia bem na vizinhança do nosso querido camping sagrado.
Enquanto a van percorria a Estrada Nacional 120, doze meios aéreos se revezavam no céu para alcançar as chamas na região montanhosa. Os helicópteros voavam com baldes de água e os aviões faziam movimentos coordenados feito uma revoada de pássaros mecânicos.
Passamos por outro camping ao lado esquerdo da estrada. Estava vazio. Acho que foi evacuado há uns dias
, o Lee comentou ao volante.
Fazia 40 graus.
Quinze minutos depois, chegamos ao nosso destino. No camping Serrão as pessoas levavam a vida na maior
normalidade. Estava mais cheio que o normal, com exilados do camping que fechou.
O fogo, a fumaça, os moradores desalojados, os insetos queimados, os coelhos, as raposas, javalis, árvores - todas as criaturas afetadas pela tragédia estavam longe
demais. Estamos de férias,
pareciam dizer os campistas.
Eu e o Lee também.
A rotatividade no camping é grande, então tivemos muitos vizinhos ao longo da semana. Bebê Ian, que passou três dias na barraca da frente, chorava todo fim de tarde ao ver a fumaça do incêndio subindo ao céu como um cogumelo atômico.
Nunca descobri o nome dos demais membros de sua família. Apenas o do Bebê Ian. Quando o sol se punha, seu pai de sunga e regata o levava à cerquinha do camping e apontava para o horizonte, onde as chamas alaranjadas faziam um contraste brilhante contra o céu da noite que se formava.
Olhando de longe, eu pensava que parecia Mordor, a terra de Sauron do Senhor dos Anéis.
Recebemos amigos no nosso templo de veraneio, também. Dois dias depois da nossa chegada, uma amiga que mora perto da praia veio nos visitar. Servimos um café na mesa de piquenique enquanto ela nos contava sobre suas experiências como professora de dança e sobre os alunos ou conhecidos que tiveram que sair de suas casas. Muita gente perdeu tudo.
Ela foi embora antes do almoço.
Dia seguinte foi a vez de um outro casal. Tá rolando um incêndio aqui perto, vocês viram?, e eles fizeram que sim, mas mudamos logo de assunto. Cortamos uma melancia e à tarde saímos para caminhar pelas rochas da praia. Quando eles foram, às onze da noite, senti-me um pouco
sozinha.
Logo passou.
Meu guru diz que meditar é dar liberdade àquilo que precisa atravessar a nossa consciência sem que nos enganchemos à passagem. Observar em meditação é exercitar a compreensão de que tudo pode existir do jeito que é, porque na verdade
queira ou não
já existe de qualquer maneira.
Olhando com cuidado, conseguimos aprender profundamente sobre a ordem da vida. O clichê é terrível (eu sei), mas é o que insight da experiência direta é muito poderoso. Não importa o que seja, bom ou ruim, quente ou frio, apertado ou não, tudo uma hora vai
passar.
Houve ainda o dia em que pegamos a bicicleta e fomos jantar num restaurante à beira da estrada.
Enquanto comíamos, uma van parou e abriu o capô de trás. As portas ficaram abertas enquanto o motorista e sua esposa foram tomar uma cerveja, e de dentro do porta-malas um par de gatos em duas jaulas enormes nos
olhou. O cinza ficou quieto. O amarelo peludo deu uns miados.
Eles colocaram tudo na van, inclusive os bichos, para o caso de pegar fogo na casa
, explicou a garçonete.
Acho que o homem era alemão e a mulher, portuguesa. Pareceram-me tranquilos.
Teve cheiro de sardinha grelhada. Teve um grupo de campistas que instalou uma barraca gigante, três geladeiras e uma mesa enorme no meio do terreno. Um casal de carro chique que montou um varal para bloquear a vista e a passagem de todo mundo. Teve um pai solteiro e uma barraquinha que ele montou junto com os dois filhos pequenos na sexta à tarde. E uma ciclista viajante que armou a tenda dela atrás da nossa van. Uns dias antes, um outro ciclista em viagem tinha ocupado o mesmo lugar (e se tivessem se encontrado? Será que também começariam uma história de amor no Camping Serrão?).
No sétimo dia, ouvimos um barulho lindo e estranho no final da tarde. A três tendas de distância, bem perto da gente dois homens de uns trinta anos tocavam djambê. O som dos atabaques se espalhou pelo camping inteiro
- será que eles são malucos? daqui a pouco alguém vai reclamar -
, mas apesar das minhas preocupações ninguém reclamou e o som continuou rolando até depois das dez como se fosse um milagre.
As batidas eram uma vassoura limpando a tristeza invisível que tinha sobrado no ar. O incêndio estava controlado, Mordor já tinha desaparecido do horizonte, o bebê Ian tinha voltado para sua casa em Lisboa e a nuvem de fumaça, desaparecido do céu.
Deitei com o Lee na rede e pensei que apesar de tudo a espécie humana ainda é capaz de coisas muito bonitas, como tocar djambê.
Ficamos na rede bastante tempo antes de entrar na van para dormir. Queria prolongar a sensação maravilhosa de leveza depois de tanta destruição, até lembrar que a alegria também faz parte da ordem do samsara. Ela me atravessa e me ressuscita, mas não consigo carregá-la comigo. Não importa o que seja, bom ou ruim, quente ou frio, apertado ou não, leve ou pesado, isto também vai
passar.
Notinhas
Para esta edição, adorei resgatar as ilustrações que fiz enquanto passava um mês na cidade indiana sagrada de Tiruvannamalai, em 2019. Elas foram feitas originalmente num caderno enquanto eu observava muito a minha mente.
Assistimos dois filmes muito bons aqui. O primeiro é Jodorowski’s Dune, um documentário sobre o projeto do Jodorowski de filmar o livro de Frank Herbert, e que nunca foi concretizado. O projeto reunia um elenco tipo Dali & Mick Jagger, e artistas do tamanho de Giger (o cara que construiu visualmente o universo de Alien). O segundo filme é Paterson, que eu ainda não tinha visto e me fez lembrar do tanto que eu amo o Jim Jarmusch.
E o meu livro de estréia, O mundo sem anéis, está com um novo projeto visual numa edição toda linda no Kindle (o livro físico continua esgotado por enquanto!).
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Que leitura boa de se fazer! Lindo! Obrigada 💚
Que delícia de texto, de verdade. Queria ser amiga do casal que levou os bichinhos consigo, com medo do fogo queimar a casa.