Sofá da Surina

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#25. Minha mindful bicicleta

sofadasurina.substack.com

#25. Minha mindful bicicleta

Deep Cycling

Surina Mariana
Feb 4
13
8
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#25. Minha mindful bicicleta

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Esta edição do Sofá tem uma opção de áudio. Se quiser escutar o texto, aperte o botão de Play aqui embaixo para ouvir minha leitura.

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Oi, tudo bem?

A bicicleta é um veículo maravilhoso que produz prazeres infinitos.

Por exemplo: a gloriosa emoção das descidas. A natureza passando na sua frente em velocidade perfeita. A alegria sóbria dos planos, que combinada com o vento a favor coloca o coração para conversar com os pulmões. A resistência leve nas panturrilhas em terreno flat é uma mensagem que chega a todas as partes do corpo, dizendo assim:

estou viva.

Mas a bicicleta é um veículo maravilhoso que produz desprazeres igualmente infinitos.

Grandes Ensinamentos Ciclísticos vêm daquilo com que preciso lidar porque não há outro jeito, simplesmente. Pneu furado, vento contra, chuva, motoristas deselegantes, o caminhão na frente soltando fumaça de escapamento e até um rebanho de ovelhas que resolve cruzar o caminho - a lista é gigante. E como o pedal não terminou, tem mais uns quilômetros pela frente e não dá para cancelar ou mandar um bloquear usuário na vida 3D, a única solução é tentar viver o desagradável em toda a plenitude que der.

Meu desprazer despreferido é pedalar em terrenos empinadinhos.

Sabe aquele tipo de percurso plano com uma ligeira inclinação, invisível ao olho? Você olha e parece que a estrada segue reta até o fim do mundo, mas você sabe que na verdade o caminho vai meio que subindo.

Não gosto das subidas. Mas ter uma montanha pela frente te dá um sentido na vida. Pode ser hard, mas uma hora vai acabar e você sabe. A expectativa de um futuro certo faz toda a diferença. Você sabe que quando chegar lá em cima vai vir aquela sensação de coração batendo desesperado, de estar no limite, da descida depois.

As retas com uma leve subidinha, por outro lado, são de uma ordinariedade odiosa. Faltam-lhes a força redentora das montanhas e das tragédias - elas são tipo um domingo à tarde sem nada com que preencher as horas que levam uma eternidade pra passar. Você pedala desgraçadamente e a bicicleta não sai do lugar. A estrada se abre contínua sem sinal de mudanças. Sem promessa de descida. Sem um futuro redentor. Sem recompensas. Sem promessa nenhuma. Só reta, mesmo.

Mais nada.

Foto em preto e branco na qual se vê uma mulher - a autora desta newsletter - e uma bicicleta preta da marca Specialized. Foto tirada em janeiro de 2023 em Lisboa.
Primeiro encontro com a Francisca, minha bicicleta nova. Nós duas em Lisboa, janeiro de 2023

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No meu circuito diário de pedal tem uma parte que é assim. Fica bem no finalzinho, quando já fiz uns bons três quartos de hora pedalando. Primeiro vem uma descida de dez minutos, depois o asfalto se abre num portal de pinheiros verdinhos com copa arredondada. Dos dois lados da estrada dá para ver as ovelhas pastando em campos onde volta e meia se enxerga vestígios de antigas casas de pedra que o tempo transformou em ruína

, e ali, no meio desta seção tão poética da paisagem, minha bicicleta que acabou de descer começa a perder impulso. Baixo as marchas, uma, duas, três, agora bem levinha, já sei o que vem e tudo que penso é que não quero estar ali. Penso em outras coisas, também. Penso em quanto falta pra chegar. Olho pra frente. Conto minutos e quilômetros; a estrada fica mais comprida ainda.

Então criei um método.

Meu método não tem mais a ver com o prazer do pedal. Agora não tem mais a ver com a satisfação de subir. Nem com a descida que vem depois. Tudo que me resta é prestar atenção na perna fazendo cada novo ciclo. Não importa que não estou saindo do lugar. O que importa é pedalar.

Abaixe a cabeça e pedale. Fique só pedalando.

Dei nome para o meu método: deep cycling.

Meu marido vem comigo às vezes e já sabe:

- Meu amor, você tá bem?

- Me deixa em paz. I’m deep cycling.

Ilustração em aquarela, guache, nanquim e carimbo mostrando uma bicicleta cujas rodas são feitas de letras e uma mulher meditando de pernas cruzadas no selim.
Flying cycling, 2023. Aquarela, nanquim, gouache e carimbo

À sua maneira, deep cycling é a minha versão desta palavra anglófona que engolimos inteira porque está na moda: mindfulness. Meu deep cycling é anglófono também, olha que ironia. É porque meu marido é britânico e foi tentando explicar pra ele que o termo surgiu.

No desespero do desconforto, o deep cycling é o meu exercício de mindfulness. De presença plena. Ou, em palavras mais simples, de aprender a aceitar a vida tal como se apresenta, sem resistir nem ficar querendo amar. Para ser sincera, parece-me impossível amar o plano empinadinho.

Deep cycling é tipo uma quarta-feira, um meio de semana, feito pra passar. Deep cycling é tipo tédio. Deep cycling é a parte que você não lembra quando começa a contar sua viagem de bicicleta pra alguém. Mas deep cycling é também a matéria primordial de uma saída de bike - de um jeito ou de outro, você vai encontrar um trecho de deep cycling e muito provavelmente ele vai ser a grande parte do seu percurso, então é melhor aceitar.

Deep cycling é o que acontece nas frestas, quando a emoção ou o medo não estão no primeiro plano. Deep cycling é o coração profundo do pedal - ficar sozinha com a corrente, a perna e a tração. Deep cycling é o pão com manteiga de cada dia, sem queijo, sem geléia, sem torrada.

Passarei agora de texto ciclista a uma generalização arriscada sobre o sentido da existência.

Talvez o segredo pra eu ser um pouco mais feliz seja aprender a deep cycling a minha vida.

Exercício de escrita da semana

Hoje queremos o tédio. Esta é a oportunidade de deixar de lado a tentação de escrever uma história fosforescente. Relax. Te convido pra esquecer que você tem obrigação de convencer qualquer um sobre o quão interessante a sua história é.

Este é um exercício para curtir a água do cacto cotidiano. Antes de começar, marque 3 minutos e preste atenção na respiração. Depois, sente por mais 5 minutos e me conte sobre o seu tédio. Você pode começar descrevendo o que está na sua frente ou escavar a memória: fale sobre a sala de estar onde sua mãe assistia televisão comendo sonho de valsa. Sobre seus domingos à tarde na casa da avó. Conta pra mim; juro que quero entrar nesse tédio com você.

Todo mundo já sentiu tédio. Você não está só.


Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,

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#25. Minha mindful bicicleta

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8 Comments
Pat Tischler
Writes In-sight
Feb 4·edited Feb 4Liked by Surina Mariana

Oi Mari! Adorei o texto de hoje e aqui está o meu ensaio sobre o tédio. Beijos e boa semana!

O meu tédio é relacionado com a rotina de servidora pública. Na repartição, me entediam as demandas, o tempo precioso gasto em atividades vazias de coração, as relações forçadas, as respostas repetitivas para problemas que não me interessam. Um dia a dia que não me acrescentaria em nada, não fora aqueles caraminguás que entram em minha conta bancária no início do mês. Mesmo que esse quotidiano me ensine coisas sobre mim, ainda assim, morro de cansaço só de pensar, pois as razões do meu tédio já fazem parte daquele rol de dorzinhas crônicas que, aceitei, não vão ter solução nessa vida.

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1 reply by Surina Mariana
Cleu Nacif
Writes Do outro lado e aqui
Feb 5Liked by Surina Mariana

Meu marido tenta me convencer a embarcar com ele na bicicleta há anos, mas nunca foi a minha. Tvz se ele tivesse seu texto como argumento poético, as tentativas dele teriam funcionado melhor😍 adorei!

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1 reply by Surina Mariana
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