Começar é um pouco como quebrar a casca do ovo de fora pra dentro.
Você acha que é duro, mas depois de bater um pouco percebe que a parede é fina e que por trás daquele mundo escondido há uma piscina gosmenta e mole onde dá vontade de ficar.
Abro a mochila roxa com fecho preto e vou enfiando os objetos que separei nos últimos vinte dias.
Para quem vê de longe, é uma coleção de itens aleatórios.
Temos: um saco de dormir verde e rosa, dois pares de meia de algodão, dois pares de meias esportivas, duas calças fusô, um pacote de paracetamol, fones de ouvido, um caderno, um estojo pequeno de aquarela, um pincel.
Para quem vê de perto, são meus melhores amigos, escolhidos cuidadosamente para me fazer companhia nos próximos trinta e cinco dias.
Peso total: 7.2kg.
Minha mochila roxa é a mais linda do mundo. Foi presente da minha mãe, comprada no centro de Curitiba em 2017.
Tínhamos outros planos de orçamento e modelo ao sair de casa pela manhã, mas quando a botei nas costas soube imediatamente
: esta é a minha mochila.
Além de tudo, era feita para mulheres, por isso se ajustava perfeitamente aos meus ombros e cintura. Mamãe parcelou em três vezes. Saindo da loja, andamos pelo centro de Curitiba; na rua de trás havia um quiosque nepalês:
Vamos comer lá?
Pedimos dois pratos de curry com grão de bico.
Dez dias depois, peguei o avião para Portugal levando só a mochila.
Isto foi há cinco anos.
Era uma época de inocência. Não sabíamos que ia ter pandemia, que eu ia mudar para uma vila alentejana, nem ficar tanto tempo sem visitar o Brasil.
Pensando retrospectivamente, imaginar que a gente pode planejar o futuro é bem ridículo.
No dia em que a compramos, a mochila de 50 litros era:
1) meu passaporte para uma nova vida em Portugal
2) o sim da mamãe. Ao comprar a mochila, ela dizia: vai, minha filha, vai morar nesse ashram, tá tudo bem.
Na loja, minha linguagem corporal era típica daqueles que sabem como será o futuro. Eu tinha a convicção irredutível de que estava indo morar num ashram para sempre - ou pelo menos por grande parte da vida.
Tinha certeza que eu era uma espécie de monja moderninha que vestia calça jeans em vez de bata.
Do Brasil para o ashram, levei: poucas roupas, nenhum batom, um casaco grande de frio, dois pares de sapato, dois livros.
O resto da minha vida - incluindo a repartição pública, o cachorro, a biblioteca e a minha coleção maravilhosa de sapatos - ficou para trás, morreu (o cachorro), foi vendido, doado, esquecido no sótão da casa da minha mãe.
Morei no monastério só por um par de anos. Saí, casei, construí uma casa no interior de Portugal, visito o ashram todas as semanas e sinto saudades.
Nos últimos três anos, minha mochila ficou largada, mas nunca esqueci que ela existia.
Tenho a impressão de que nunca cumpriu o destino que lhe foi prometido. Serás feita para dar testemunho das belezas que ainda cobrem este planeta, foi o que lhe disseram ao cria-la, toda feita de costuras reforçadas e tecnologias esportivas. Desde que saiu da loja, entretanto, a minha mochila roxa conheceu principalmente o silêncio e a solidão das bagagens de avião, dos solenes porões monásticos e das esteiras de aeroporto.
Entendo o que você sente, minha querida
mochila. Estes anos de pandemia foram duros para mim também.
No momento em que você recebe esta mensagem, eu e minha mochila roxa teremos atravessado os Pireneus, saído da nossa curta estadia na França e entrado no terceiro dia de travessia rumo a Santiago de Compostela.
Ainda temos mais de 30 dias de caminhada.
É um sonho antigo.
Não levo computador comigo. Minha mochila prefere a leveza. Por conta da leveza, também, deixei em casa minhas tarefas. Pode parecer esquisito, mas este caminho foi o jeito que inventei para
descansar.
Vamos juntas: minha mochila e eu. Mais ninguém.
O Sofá da Surina continuará chegando pra você todos os sábados. As edições seguintes estão agendadas com textos cuidadosamente preparados.
Ainda é um mistério se vou conseguir terminar a viagem, se sobreviverei ao trajeto e aos turistas que pipocam ao longo do caminho nesta época do ano.
O que vai acontecer, não sei.
Mas na minha mochila roxa estou levando um caderninho pra fazer de diário. Espero escrever aqui depois que a viagem acabar, ou durante. Sempre aparece um computador velho num albergue - quem sabe? A vontade é imprevisível.
Se não for durante a viagem, contarei depois que terminar.
Torce por mim?
Há 10 anos, Santiago em bicicleta
Não é a primeira vez que faço o caminho. Mas é a primeira que faço a pé.
No verão de 2013, olhei em volta e descobri que meu corpo estava no lugar certo, na hora certa. O problema é que não estava sozinho: comigo havia também uma bicicleta.
Dez anos atrás eu já sonhava em caminhar até lá. Acontece que naquele mês de junho eu acabava de terminar uma viagem de bici, e só quando cheguei à última cidade é que descobri que estava no ponto de partida para Santiago de Compostela. Por causa disso, então, estendi a viagem e fiz o caminho pedalando.
A viagem durou mais ainda do que a chegada a Compostela e virou meu livro O mundo sem anéis (2015, selo Longe), que você encontra aqui (só em Kindle por enquanto; a edição física está esgotada…).
Para celebrar minha nova partida, quero disponibilizar para vocês gratuitamente a seção do livro onde conto a história da minha viagem pedalando para Santiago. Por favor, tenham compaixão com a escritora que fui dez anos atrás:

Notinha
Muito obrigada a todxs que vêm apoiando o Sofá da Surina pagando um café para a escritora. Os cafezinhos são recebidos com muito carinho. É maravilhoso que vocês leem e contribuem para este sofá continuar quente e bem acolchoado. Agradeço por cada um, e saiba que de um jeito ou de outro os cafés que chegamestão virando passos e textos e albergue no caminho para Santiago.
Ah!, e que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Eu e Gray Gray estamos felizes pela sua caminhada! Nos vemos em breve! Aproveitaaa 🤍
Bom Caminho!!! 🙏🏻🙏🏻🙏🏻