Comecei o mês de agosto organizada e orgulhosa – o texto da minha Newsletter me esperando prontinho no domingo pra sair segunda, mas uma coisa inesperada aconteceu. Almoçando sozinha no chão de casa com um tupperware de salada numa mão e o celular na outra, me deparei com a notícia de que uma pessoa querida tinha morrido.
A obituário vinha do mural de notícias do mundo, estampado na primeira página da Folha de São Paulo. O legado de Erika Salum, a manchete dizia algo assim mas não tenho certeza porque não consigo mais encontrar o artigo. A Erika morreu? Mas gente, ela mal tem 40 anos, foi a primeira coisa que pensei, e logo me veio a óbvia causa mortis: foi atropelada de bike, certeza.
Eu estava errada em tudo. Meu espanto vinha com um ano de atraso porque Erika nos deixou em agosto de 2021. Além disso, a razão da morte foi um câncer com o qual ela convivia há cinco anos, não um acidente de bicicleta.
Fiquei sentada uma hora depois de ler a notícia, terminando de comer os restos de alface murcha e tentando entender via Google o que tinha acontecido.
Depois parei de googlar e fiquei quieta.
Vinte minutos depois, abri um documento novo no Word, arquivei o texto que estava pronto e comecei a escrever esta edição do Sofá da Surina para falar alguma coisa sobre a Erika, mas ainda não sei direito o quê.
Nunca conheci a Erika Salum pessoalmente, mas fomos apresentadas virtualmente por uma amiga comum que me sugeriu contactá-la porque nós duas gostávamos de bicicleta.
Achei a ideia ruim, o tempo todo ficam me mandando falar com outros ciclistas só porque gosto de pedalar, mas quando pesquisei na internet foi a foto da Erika que me fez mudar de ideia. Ela estava lá, lindamente despretensiosa num colã de ciclista, cabelos ao vento e óculos de sol.
Mandei meu primeiro livro pra ela, que leu e gostou, daí pra frente conversamos um pouquinho por email. Na época a Erika já era editora da revista Go Outside, e lembro o quanto admirei a sua abertura em dar conversa para uma desconhecida como eu, oi, tudo bem, ouvi dizer que você é ciclista também, é verdade?
Logo depois ela começou a escrever um blog na Folha de S. Paulo, o Ciclocosmo, que continua ativo até agora - assinado hoje em dia pelo seu antigo companheiro.
Devo à Erika meu amor pelo Peter Sagan, meu interesse pelo ciclismo feminino e a inspiração que me faltava para ver a bicicleta em tudo. Existem pessoas que têm a capacidade de gostar de algo com tanta verdade que aquela coisinha que elas amam se transforma num pó radioativo que contamina qualquer fresta que tocam. Rolo a barra na página de arquivo de posts do Ciclocosmo e confirmo que era assim mesmo: ela fazia cobertura do Tour de France, comentava sobre mulheres ciclistas no Afeganistão, discutia mobilidade urbana e a reabertura da ciclovia do rio Pinheiros.
Objeto que rendia assunto, a bicicleta da Erika era infinita.
Ontem à tarde, antes de saber de tudo isso eu estava almoçando inocente no restaurante aqui da vila. Conversava com duas amigas que usam a bike como meio de transporte e estão começando a querer experimentar pedais longos. Uma delas me confessou que tinha dor “lá embaixo”, por isso o medo de aumentar a distância. Lá embaixo seria a bunda? Não, ela explicou, lá embaixo era a vagina, e aí começamos a conversar um pouco sobre anatomia feminina e equipamento.
Apesar da maior inclusão das mulheres, a bike é um assunto predominantemente masculino. Falamos pouco sobre o nosso corpo em cima do selim e noto que esta lacuna é, em muitas situações, a peça invisível que continua afastando muitas de nós do pedal. Como faz quando tem cólica menstrual? E quando tá menstruada? Rola acampar de bike sozinha?
Entre em qualquer bicicletaria comum e verás: todos os modelos de bicicleta e de roupas que você vai encontrar são masculinos. Se conseguir encontrar uma ou duas bicis para mulher num canto remoto do fundo da loja vai ser muito.
Por que estou falando isto? É porque a Érika me fazia ver em 3-D o amor pelas bicicletas e o compromisso com o ciclismo a partir de um corpo feminino. E isto, que não é comum de se ver, me deu a capacidade de me enxergar fora de mim. A Erika foi um espelho que me permitiu acreditar na ciclista que eu poderia ser.
Não sei se a Érika era uma pessoa conhecida, talvez você nunca tenha ouvido falar dela. Ela estava lá no jornal, então presumo que teve um papel importante na vida de muita gente.
Seja como for, esta edição do Sofá da Surina é para ela. Se você não a conhece, quero muito que você tenha a chance de começar a conhecer a Erika por aqui.
Quanto a mim, escrevo para lembrar e agradecer esta mulher que nunca conheci e sempre amei.
Seja lá em que lugar estiver, que você o esteja descobrindo em cima da bicicleta mais rápida do mundo, Erika.
" Às 9h30 de 14 de janeiro de 2016, meu médico médico me deu um bom dia meio amarelo e foi logo tascando: ‘Sim, Erika, é câncer’.
Ao longo de 11 meses fiquei careca, emagreci, vomitei, inchei, tomei injeções na barriga e enfrentei 16 sessões de quimioterapia. Ganhei cicatrizes também, algumas físicas e outras bem piores, na alma.
Em nenhum momento nesse caos todo eu parei de pedalar. Pedalava, claro, bem mais devagar que antes, não raras vezes sentindo uma náusea violenta. Mas era ali, em cima da minha bicicleta, que eu me sentia mais viva.
Pedalar e encarar aventuras quando se tem sérios problemas físicos ou psicológicos não é apenas libertador. É, especialmente, inspirador.
Ajuda a quebrar paradigmas e destruir preconceitos. Motiva quem está em situação tão delicada quanto a entender que, sim, dá para desviar dos perrengues e curtir a vida.
Pedale com diabetes, com uma perna só, com depressão… mas pedale!
O mais lindo é subir na bike dizer uma baita ‘sai fora!’ à condição que a vida te impôs.”
[Confie na bike!é um filme de três minutos no YouTube que o companheiro de Erika fez para homenageá-la. Este trechinho está no filme. Para um relato (lindo) da Erika Salum sobre o papel do ciclismo durante seu tratamento de quimioterapia, aqui (trechinho em português).]
Ah! E que todos vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,