-Tem muita mulher caminhando solo este ano, não tem?
A pergunta é minha. Nós duas estamos num boteco vagabundo entre Bercianos del Real Camino e Relliegos. São 8.15 e o balcão está lotado de gente pedindo café, croissant, torrada. Na cadeira de plástico, me espremo entre mochilas coloridas e bastões de caminhada enquanto um fluxo interminável de clientes se acotovela para tomar café da manhã.
Acabo de conhecer a mulher que está sentada na minha frente. É uma americana mais ou menos da minha idade - oi, tudo bem? My name is Kathryn with a ‘K’ and a ‘Y’ - e está usando uma viseira destas de jogador de tênis que eu nem sabia que fabricavam mais. Assim como eu, veio caminhar sozinha até Santiago de Compostela.
- Tem muita mulher sim, e você já notou o outro lado? Repara. Não tem homem caminhando sozinho. Se tá viajando solo, é mulher.
Não tinha parado para pensar. É verdade.
-… e ainda por cima eles estão sempre em grupo com outros homens ou em casal
, arremata.
Kathryn também está tomando um café com leite. É baixa e grande, uma presença inabalável com quem simpatizo imediatamente. Há algo nela que me faz sentir em casa, uma falta de pretensão mergulhada em auto-confiança. Nem arrogante, nem submissa. Ela é mais ela dentro da blusa lilás que brilha de tão sintética.
Na parte da frente da perna, noto de relance que leva uma fita destas chiquerrimas colada do joelho até a base da canela - o mesmo lugar onde tive minha lesão na segunda semana e que ainda me dói quando caminho muito.
-É porque sinto dor quando tenho que fazer este movimento aqui, olha
, e mexe o pé para cima e para baixo.
A fita é azul. Acho linda, uma solução mecânica para machucados, uma alternativa que não envolve anti-inflamatório, ibuprofeno nem qualquer outro tipo de remédio. “Fita kinestésica”, explica. Foi uma terapeuta que recomendou quando ela se machucou, também no começo da caminhada, “é o maior esquema, você tem que aplicar a pressão certa, ancorar aqui, nestes pontos do pé. Vi tudo no YouTube. Quer levar um pedaço da minha? Tenho um rolo enorme na mochila, te dou um pedaço”.
Não, obrigada. Morro de vergonha. Recuso a oferta sabendo que tudo que eu quero na vida é um pedaço daquela fita. Minha timidez é estúpida e cheia de nãos. Depois disso, levantamos
- Buen camino
, e voltamos a caminhar, cada uma por si, cada uma no seu passo.
Marijn tem uma fita kinestésica cor de rosa pregada na batata da perna esquerda. É a coisa mais charmosa do mundo. Foi a primeira coisa que notei quando a vi arrumando a mochila no beliche abaixo do meu, em Hornillos del Camino.
Naquela noite não conversamos. Ela dormiu quieta. Eu também. 9 da noite o dia tinha acabado até a manhã seguinte, quando acordei mais cedo que ela e empacotei a mochila na inocência de quem sequer imagina que carregará percevejos dentro do saco de dormir para a próxima cidade
, mas esta é outra história.
O dia raiou e Marijn caminha na minha frente. A fita kinestésica rosa na perna sardenta se mexe num corpo compridíssimo de divindade nórdica que só alcanço porque ela resolveu parar para tirar o casaco e apreciar a paisagem chata das plantações de trigo infinitas
-Até que enfim esquentou, né?
Vendo que estou só, se oferece para tirar uma foto minha diante de uma coluna de cimento informando que faltam 477,7km para Santiago de Compostela
- Três setes, Surina. É o número dos anjos.
Passo meu celular, ela faz a foto, depois vai embora.
Nosso próximo encontro será na mesma estrada, uns 7km à frente. Estou saindo do balcão de um bar levando um pires com ovo cozido e um café com leite na esperança de comer sozinha numa mesa do terraço. Ela tem outros planos e um jeito imperativo de me abordar:
-Pode sentar comigo lá naquela mesa do fundo que eu só vou pegar suco de laranja aqui.
Sou uma preguicosa social, não tenho paciência para começos. Mas às vezes é inevitável. Ela chega com o suco e um croissant. Oi, sou brasileira mas moro numa vila en Portugal. Olha, sempre quis conhecer Portugal; eu moro com meu marido na Noruega mas também não sou de lá. Fiz o caminho há nove anos de bicicleta, mas andando é a primeira vez - e você? Eu queria fazer já tem um tempo (ela pausa para tomar um gole do suco), mas tive que mudar de planos porque há três anos tive um burnout, acordei um dia e descobri que estava paralisada da cintura pra baixo. Foi assustador, te juro, tive medo. Você não sabe o que é ter medo. Os médicos demoraram para descobrir o que era, ninguém sabia de onde aquilo tinha saído e se um dia eu voltaria a andar. Aí o diagnóstico veio - doença autoimune. Caminhar eu tive que aprender do começo, com fisioterapia.
Chegando no albergue, procurei a foto que ela tinha tirado de mim.
Levei um susto: era uma enchente de luz.
Há dez anos, quando fiz o caminho de bicicleta, encontrei só uma mulher pedalando sozinha. Não sei se os números continuam igual ou se algo mudou no mundo ciclístico.
Hazel gosta de:
- ler a seção histórica do guia de viagens do Caminho de Santiago
- batatas cozidas
- caminhar sem ninguém ao lado
O caminho se anda só, diz.
Nisso somos iguais.
Em Logroño, dormiu na parte de baixo do meu beliche e passou a maior parte do dia lendo a seção sobre monumentos do seu livrinho. Um pouco antes da janta, virou-se pra mim a caminho do refeitório:
-Acho que estou pronta para fazer minha primeira etapa longa.
No dia seguinte, caminhou 29km com sua mochila azul. Sete horas a pé. Hazel caminha só, porém não diria que é rígida na regra que adotou aqui. De vez em quando ela abre exceções na estrada - entramos juntas em Burgos, por exemplo. A mochila azul é dois quilos mais pesada que a minha mochila roxa; ela é vinte anos mais velha do que eu.
Hazel gosta de cultura celta e de profecias pagãs. Dá aula para crianças numa escola alternativa do outro lado do mundo:
-Por que você veio fazer o Caminho, Hazel?
- Porque estou fazendo 63.
Hazel gosta do número sete. Conta que aos 63 acabam todas as obrigações que temos com o mundo e começa a época de viver com leveza. É a melhor parte da vida, tipo o retorno de Saturno derradeiro. O que faremos a partir daí acontecerá a partir do nosso centro existencial puro, portanto tem o potencial de ser verdadeiro, genuíno, profundamente liberto de concessões:
-Vim aqui para me preparar para o novo ciclo que me espera.
Ela tem muita fé no mistério. A última vez que nos encontramos foi em Carrión de Los Condes; Hazel comeu uma salada de pacote com guacamole de potinho na cozinha e me contou que queria parar um dia para descansar na vila de Sahagún. Algo aí a chamava. Desde então nossos tempos se separaram. Continuei; ela ficou um dia atrás.
Por que não peguei o contato da Hazel?
Provavelmente pelo mesmo motivo que não aceitei a fita kinestésica azul.
Às vezes juro que consigo ve-la na estrada, o cabelo vermelho, os óculos de aro laranja contrastando com a mochila azul, aquele jeito de andar que não hesita. Aos 63, Hazel não gosta de olhar pra trás.
Marijn tem 49 anos. Sete vezes sete.
Qual ciclo ela estará fechando?
(Vou perguntar à Hazel se encontra-la de novo).
-Don't even bother talking to her; she is a proper bitch
, ouvi o menino alertando o amigo a meu respeito no bar do albergue. “Nem perca tempo tentando conversar, aquela mulher ali é uma vaca”.
Será que é porque eu fico tomando minha cerveja sozinha e lendo o Kindle sem dar muito papo?
Será que é porque não topei sentar com ele e os amigos ontem à tarde?
Será que é porque estou quase sempre só?
Uma mulher sozinha com seu Kindle é um fenômeno incompreensível para algumas pessoas.
Confesso que me deu um certo orgulho ser vilã em vez de mocinha; é a primeira vez que me acontece. Senti-me a própria Malévola, cheia de vontades próprias.
Ser a boazinha que sempre diz sim não é a melhor opção.
Tentar agradar dá trabalho. Ler o Kindle na paz é mais gostoso.
Minha estatística totalmente não científica comprova: você pode ter qualquer idade e tamanho para caminhar aqui. Grande parte das mulheres que encontro tem entre 50 e 70 anos.
Objeto do momento: hashi japonês que eu trouxe para prender o cabelo num coque. Não pesa na mala, é lindo e não estraga minha bela juba.
Atividade preferida do momento: deitar de pernas para cima depois de massagear os pés. Quero trazer o hábito de volta para casa.
Melhor programa: cortar o cabelo numa peluqueria de Léon por 10 euros.
Dedico esta edição à Francesca, que conheci brevemente no jantar do albergue de Castrojeriz. Ela era linda, jovem, caminhava rápido e tinha muita coragem. Havia começado quatro dias antes. Na manhã seguinte ao nosso jantar a vi na estrada. Calçava sandálias com meias, tentando caminhar com uma população de bolhas em todas as partes do pé. Depois disto, nunca mais a encontrei, mas pode ser que seja só porque tenhamos escolhido albergues diferentes. Ou porque esteja algumas etapas à minha frente. Espero que você tenha continuado, Francesca.
Notinhas
Este texto está sendo escrito no celular enquanto repouso dentro do saco de dormir com as pernas para cima e copio as notas que escrevi no meu caderninho de viagem. Por favor, tenham paciência com erros de ortografia e edição.
Todos os nomes e origens das mulheres citadas nesta edição foram modificados.
Obrigada a todas as pessoas que apoiam o Sofá da Surina pagando um café para a escritora. As contribuições de todo valor são recebidas com muita alegria - elas me ajudam a entender que voces estão aí e me incentivam a continuar escrevendo as edições do Sofá.
Ah!, e que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
adorei essa. eu também percebi que tinham mais mulheres andando sozinhas do que homens
- prestei atenção nisso pq desde o primeiro dia comecei a tirar fotos de mulheres sozinhas na estrada para mostrar para o meu pai que eu não era a única... fui até o último dia fazendo isso e agora tenho um álbum de fotos de anônimas aqui. e nunca publiquei nenhuma foto ou sequer mandei pro meu pai. guardei para mim haha sobre as fitas: acho tudo mágico! nunca precisei delas, mas uma vez caminhei um trecho com uma fisioterapeuta que me explicou tudo sobre as fitas... é bruxaria sim! 😅 enfim.
buon camino!!
Que texto inspirador! E eu achando que o Caminho é
pra gente jovem. Que bacana ver essas mulheres solo. E você não é tímida. É única. E especial.
Bom caminho.
Beijo, menina