Agora imagina. Assim que você terminar de ler esta edição do Sofá, alguém vai aparecer diante da sua escrivaninha e te aplicar uma injeção. O remédio apagar a sua consciência por um tempo - seis horas, digamos, ou um pouco mais. Talvez você acorde na cama. Talvez nunca acorde. Se pudesse escolher um pensamento só antes de terminar esta edição
um único pensamento antes do mundo desaparecer
- qual você escolheria?
Pensando bem, uma cirurgia não deixa de se aproximar do sagrado, no sentido dos rituais. Uma semana antes tem a dieta para purificar o intestino. Tem as luvas de látex e a assepsia interminável dos objetos cirúrgicos no dia do procedimento. Tem o email de confirmação
esteja presente no bloco C, piso 1, pontualmente às 13.00h para check-in
a mulher alta chamando seu nome no sofá da recepção
Paciente mariana carpanezzi? pode me seguir, por favor
e a caminhada até o bloco restrito do hospital. Ela vai na frente:
é aqui.
Quarto provisório. Na cama metálica, observo o pacote de plástico transparente me esperando enquanto a voz da mesma funcionária no background me dá instruções
tire todas as roupas e coloque no armário branco ali do canto. Vista o avental com a abertura para trás, as meias de compressão, depois deite-se na cama e espere. Já vem alguém te buscar.
Estou nua sob o avental quando a enfermeira chega para introduzir o catéter na mão esquerda. Será que devo dizer que sou canhota?
Melhor não. Eles sabem o que fazem.
-Vai dar tudo certo
, ela diz, e então o teto. A porta se fecha, o quarto provisório fica para trás. A enfermeira me leva na cama: de barriga para cima, percorro com ela o hospital. Já não sei mais em que parte do labirinto estou. Meu olhar vê só o teto. Sempre o teto.
Deitada de calcinha descartável, touca e roupas verdes esterilizadas, sou oficialmente uma paciente cirúrgica. Se existisse uma fronteira separando a saúde da doença, eu agora estaria oficialmente no país dos doentes.
Depois da cirurgia, serei o que? E antes dos miomas incomodarem - doente ou sadia? Berruga no pé incurável (eu tenho) é frívola demais para contar como doença?
Vejo as saídas de ar condicionado, as rachaduras, o branco imaculado da pintura conservada, as luzes fluorescentes. A enfermeira continua me levando pelo hospital até chegarmos ao corredor que dá para o bloco cirúrgico. Atravesso a imensa porta de inox
que frio
e então finalmente a minha cama chega ao destino final. Um lugar gelado onde tudo que cabe no meu campo de visão cama-teto são máquinas, tubos, aparelhos de monitoramento, holofotes
devem precisar olhar bem a minha barriga para ter uma iluminação dessas.
Na sala de cirurgia:
Sou a Lílian e vou ser sua anestesista hoje
, anuncia a médica carioca formada em Lisboa.
Sou sua chefe de enfermagem
, a menina jovem de roupa verde.
Oi, meu amor. Sou o Amarildo, muito prazer.
Como está se sentindo? Logo começamos, Mariana
, diz a cirurgiã; touca florida prendendo os cabelos loiros.
Que perfeito
, eu penso
uma equipe médica formada por três mulheres e um gay.
Que maravilhoso
, eu penso
chegou o momento histórico em que posso ser operada por uma equipe dessas num dos melhores hospitais de Portugal.
Que triste
, eu penso
ainda ter que celebrar esse tipo de coisa em fevereiro de 2025.
Por isso, então, é que dizem que o samsara é o lugar do relativo. Ao contrário de Deus, da consciência pura ou seja lá como nomeiem, aqui no samsara tudo tem dois lados ou mais.
Uma coisa em relação a outra, uma coisa comparada a outra, uma sobre a outra. Em plena sala cirúrgica, sinto alegria e tristeza e medo e gratidão. Como é que um corpo aguenta tanto sentimento sobreposto? Por isso é que os tecidos do corpo crescem se embolam funcionam estranho, um dia
arrebentam.
-Oi, Mariana.
-Oi, Lílian.
-Mariana, vamos te dar a sua anestesia agora, tá bem?
-Você pode esperar um pouquinho?
No que a gente pensa antes de apagar completamente?
Já rezei pra tanto santo que já não sei quem chamar agora. Buda? Cristo? O meu guru? Qual deles? Qual Buda? Qual guru?
-Mariana, precisamos começar. Vou te dar a anestesia agora, tá bem?
-Espera um pouco, Lílian. Ainda não escolhi.
Uma semana antes da cirurgia, decidi pintar uma mulher com um colar de caveiras. Um obra grande, que fiz ouvindo ensinamentos de um professor tibetano. O professor falava sobre o processo de morte e sobre os pensamentos que nos ajudam enquanto estamos no bardo - entre mundos.
Então eu lembrei dos ensinamentos na cama cirúrgica. Em vez de empacar na indecisão sobre em quem pensar, trouxe para o peito a imagem algo que é verdadeiro pra mim. Pra mim. A imagem perfeita daquilo que é sempre bom
que nunca falha
que é eternamente puro. Foi uma imagem fácil de achar, porque sempre esteve comigo.
-Lílian, pode dar a anestesia.
Antes da cortina cair, deu pra sentir o ardor do anestésico entrando pelo catéter. Gritei.
-Calma, Mariana. É porque a anestesia é viscosa.
Poxa, Lílian.
-Sei lá. Como foi, é isso que você quer saber? Até posso te dizer, mas na verdade eu lembro pouco. Pra ser bem honesta, acho que tudo depende daquilo em que você pensa antes da luz apagar. Eu mesma não consigo contar os pormenores. A Lílian veio com a anestesia ardida passando pelo catéter e em poucos segundos eu apaguei para acordar seis horas depois, incrivelmente feliz. O outro lado não deixou memórias. Só sei que olhei dentro do Buraco Vazio. E que ele é bem mais luminoso do que eu imaginava.
Notinhas e recomendações
A Júlia Hansen chegou por aqui:
Todas as pinturas que ilustram o Sofá são obras minhas e estão à venda (originais e prints). As prints são produzidas em estúdios bem especiais seguindo os padrões de galerias e colecionadores, depois assinadas em tiragens limitadas. Entregas para o Brasil e para a Europa. Detalhes e encomendas por email - surinamariana@gmail.com
Sou autora de dois livros. Em formato físico, você encontra o 108 e O mundo sem anéis - aqui (entregas para todo o Brasil). Se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
O Sofá da Surina é uma newsletter enviada aos sábados de manhã, três vezes por mês. O próximo sábado é o último de fevereiro, dia de descanso do Sofá. Então nos vemos de novo no dia 1 de março.
Ah! E que você seja feliz, sempre. Até a próxima,
Que texto! Suei um pouco de nervoso por aqui porque você descreveu, com muita perspicácia, os preparativos para lidar com esse rito que é a cirurgia. Lembrei do meu percurso quando tive uma fratura de L1 na coluna e fiz uma cirurgia delicada, onde o resultado dependia muito da sorte e do talento dos médicos Foram cenas muito semelhantes a sua, deitado na maca. O pior foi acordar na UTI coletiva, mas isso é história de arrepiar. Espero que esteja se recuperando bem, com saúde e contentamentos diários. Gratidão às mãos médicas milagrosas. Abraço, Surina.
Dos eninamentos da maca de cirurgia para o Mundo!