Fiquei com vergonha por ter que conduzi-lo ao atelier pelo meio do mato crescido. Entre as flores e a grama alta provavelmente cheia de carrapatos
, o homem de mais de dois metros de altura caminha com as mãos no ar, procurando um corredor imaginário pelo caminho tortuoso de pedras e buracos que não se vê bem por causa do matagal.
Veste um sweater azul e sapatos de couro marrons, ambos de bom gosto. Nem formal demais, nem excessivamente despojado. É uma cena bonita, o homem altíssimo entre as flores da primavera na direção da cabana de madeira do meu jardim. O estúdio onde pinto e escrevo.
Diante da porta azul do atelier:
-Shambala. Isso mesmo, é o nome do meu atelier. O senhor já ouviu falar de Shambala? É o reino místico das profecias budistas - o reino que dá para o leste, para o nascente. É só uma lenda, mas tenho certeza que existe. Só está no mapa porque fica escondido entre as fibras do tempo-espaço.
O gigante sorri. Não responde se já ouviu falar de Shambala, ou se o reino mítico é uma espécie de novidade para si. Abaixa-se para passar pela porta e senta-se na cadeira que uso para pintar, diante da escrivaninha.
Lillipot, minha maravilhosa gata malhada que dorme sossegada no tapete, foge correndo pela portinhola de gatos,
É só um gigante, Lillipot. Não precisa ter medo; ele é bonzinho.
Fico incomodada porque ele não tirou os sapatos para entrar.
-Oi, Surina. Tudo bem? Aqui é a Jennifer. Meu marido veio da Holanda para me visitar aqui em São Martinho das Amoreiras. Ele adora aquela sua obra que eu comprei e queria conhecer o seu atelier. Você pode no sábado?
Tudo é uma questão de timing. O timing, ou a hora certa das coisas, diz respeito à nossa relação com o tempo.
Mas quero falar de espaço.
Tudo é uma questão de espaço, também. E isto eu entendo porque de repente o meu atelier suntuoso parece minúsculo e improvisado.
O homem mal cabe na cadeira. Sinto-me desconfortável ao vê-lo equilibrar-se na humilde cadeirinha de fórmica branca sem rodas, sem estofamento, sem nada. Sento no chão. Ele tem que se abaixar para não bater com a cabeça nas luminárias.
De cima da cadeira, o homem desengonçadamente acomodado fica olhando estático para os quadros pendurados nas paredes. Nota os pequenos círculos pintados em todas as obras e quer saber o que são. Respondo que se tratam dos círculos da iluminação, ensos, e que todas as minhas obras são povoadas por eles. Para lembrarmos sempre que o infinito nos cerca
, digo. Ele concorda.
Não estou certa que o homem consegue me escutar direito, mas acho que sim.
- E você, gosta do que faz?
Sim, ele gosta. Conta que é um psicanalista aposentado mas que ainda trabalha com supervisão porque ama demais a profissão que escolheu.
Entrego-lhe algumas obras maiores, que ele põe sobre o colo. Gosto da textura do papel que você usa, comenta. Desde que vi suas obras na casa da Jennifer, penso no seu trabalho. Suas obras me lembram as da Hilma af Klimt.
Hilma af Klimt, minha grande musa.
Ser comparada com a Hilma af Klimt por este desconhecido.
Com o corpo curvado naquela cadeira minúscula onde realmente não cabe, o gigante agora explora a pilha de obras. Olha cada uma com cuidado, tocando-as como quem toca algo frágil e perfeito.
Por fim, compra algumas prints e um original que eu nem tinha pensado em oferecer-lhe porque ninguém nunca, jamais se interessou por ele. Um original grande que eu amo tanto, que eu penduraria na parede da minha própria casa se a molduraria não fosse tão longe.
Uma obra simples: um círculo preto com um arco-íris. Simplesmente isto: o vazio luminoso. O retrato da minha mente.
-Vou enquadrar e colocar perto de mim. Vou pendurar a sua pintura num lugar onde eu possa sempre olhar.
Então o homem ficou admirando a obra. Olhou por muito tempo. Quanto mais ele olhava, mais eu a olhava também. Era como se eu estivesse olhando para a minha obra pela primeira vez. Era como se outra pessoa a tivesse pintado, não eu.
Ele repetiu que o círculo era muito bonito, que estava muito feliz com a possibilidade de olhar para dentro de um vazio de arco-íris.
Então embalei tudo, fechei a porta do atelier e subimos de volta para a minha casa.
Desta vez dei-lhe a mão porque tive medo que ele caísse na subida.
Era um homem tão erudito, aquele. Disse-me que a psicanálise tinha erodido sua ideia de que havia um eu coerente dentro de nós. Agora, aposentado, dedicava-se a investigar as fronteiras entre a espiritualidade tradicional indiana e as reflexões psicanalíticas. Sou inclinado às questões intelectuais, disse-me.
Pareceu-me alguém de outro tempo, um homem calmo que se interessava pelas coisas do espírito, e aquilo lhe dava um ar elegante. Ele era elegantíssimo; a versão humana do Mister Gray, meu gato mais velho. Tipo o David Bowie, mas sem a iconoclastia. Um perfeito gentleman.
Do encontro, concluo: olhar é poderoso.
Certos olhares são capazes de redimir o mundo inteiro.
E embora eu deseje do fundo do coração que as minhas pinturas se pareçam com as da Hilma af Klimt, a verdade é que a comparação diz mais sobre aquele homem do que sobre mim. Ela é um testemunho da capacidade que o gigante holandês tinha de me olhar com respeito, e de fazer com que eu experimentasse de volta este olhar respeitoso sobre mim mesma e sobre as as minhas criações.
O homem foi embora no seu carro branco chiquérrimo levando um tubo cheio de obras. Disse que gostaria de voltar ao atelier para visitar-me e ver novos trabalhos enquanto estivesse de passagem pela vila. Você é sempre bem-vindo aqui, respondi, e havia verdade em cada palavra do que eu disse.
You’re welcome to visit Shambala any time you wish.
Quando o carro desapareceu na subida, senti imensa falta do homem. Era um estranho, um gigante gentil, e eu sei que é estranho dizer isso. Talvez seja só o seu trejeito de psicanalista, talvez seja só os hábitos que a profissão construiu no corpo dele, mas tive a impressão de que ele olhou algo dentro de mim que é muito bonito, e que nem eu mesma sei direito o que é.
Maio no Sofá: Olhar
Olhar, este termo que pode ser verbo ou substantivo, é o tema das edições de maio do Sofá da Surina. O que acontece quando olhamos algo por muito tempo?
Às vezes parece que quando me fixo longamente sobre uma imagem, a forma que está fora vai se formando de novo dentro da mente, ganha uma segunda vida e tem a chance de se tornar uma experiência de longa duração dentro de mim. Em maio, falaremos sobre isto. Sobre o olhar como uma forma não-verbal de reconhecimento de si.
Nesta primeira edição, escrevi sobre o olhar suave de um desconhecido que adquiriu algumas das minhas pinturas. Na semana que vem eu vou falar sobre o processo de criação de uma pintura do Buda Amithaba. Na última semana do mês, quero falar sobre Avalokiteshvara, o bodisatva da compaixão, e seus mil braços com olhos nas palmas da mãos.
Notinhas
Todas as ilustrações que estão no Sofá da Surina - incluindo o círculo luminoso desta edição - são obras minhas e estão à venda (original e prints). Detalhes por email - surinamariana@gmail.com
Sou autora de dois livros. Em formato físico, você encontra o 108 e O mundo sem anéis - aqui (entregas para todo o Brasil). Se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
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Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Que lindo!
A pintura do arco-íris é mesmo hipnotizante! Um dia ainda conheço seu atelier. beijo