#30. O lugar secreto das coisas que não falam
Phyllida Barlow e a arte de reencontrar o jardim das nossas criações invisíveis
Semana passada uma amiga me enviou um vídeo curtinho com o trecho de uma entrevista com a escultora britânica Phyllida Barlow. Na minha ignorância para com o mundo das esculturas, nunca tinha ouvido falar dela.
Mas o vídeo me comoveu.
Numa certa altura, aquela mulher linda com jeito de criança conta que uma das suas grandes inspirações está nas obras artísticas que nunca se tornam públicas:
“Existem muitos artistas que não fazem exposições e há muita arte que não é vista. Acho que fico intrigada com isso - com a criação de trabalhos que não têm uma destinação. Há uma solidão e uma tristeza envolvidos neste tipo de fazer. Muitos artistas aguentam isto durante a vida; é algo heroico.
O romance que nunca foi publicado: será que não devia ter sido escrito? Claro que deveria. Há muito sobre o que não falamos e que não reconhecemos: o não-visto e o desconhecido. O ato criativo como uma experiência profundamente privada”
Fechei o vídeo da entrevista e uma nuvem de melancolia descansou a cabeça no meu ombro. Com a solidão do Reino das Coisas Esquecidas evocado pela Phyllida, passei a tarde meditando sobre o papel que as coisas que não se dão a ver ocupam na minha vida.
Lembrei primeiro dos meus rascunhos que dormem agora numa gaveta do atelier, intocados pelos olhos alheios e pelos meus.
Lembrei das páginas de diário que escrevi e que ninguém lerá. Lembrei ainda dos antigos diários que um dia queimei, rasguei ou pus no lixo. Hoje me arrependo. Não quero que o passado ocupe um lugar a mais nas estantes deste mundo, foi o que pensei naquela tarde de janeiro de 2018 em que preparei as malas para vir a Portugal e destruí mais de trinta volumes que tinha escrito nos últimos anos.
Rasga-los foi uma violência, hoje eu sei
que eles ainda não estavam prontos para partir.
O Rollo de Resende tem um poema maravilhoso que me transporta para o mundo secreto daquilo que só vive dentro de nós. Quando olho o jardim de casa, reparo que o meu quintal também é uma espécie de mundo interior que tomou forma do lado de fora dos meus olhos. Alguém jogou um manto de invisibilidade ali, por isso até hoje ele continua sendo um jardim secreto.
Uma coleção de seres selvagens que encontram poucos olhos humanos vive no nosso terreno de um hectare. Não tenho vizinhos. Entre os seres que habitam este lugar está o meu atelier, com seus quadros pendurados. Uma grama fresca cresce no solo pedregoso do Alentejo durante a primavera e o pastor local traz suas ovelhas para comer. Na semana passada uns cavalos fugidos apareceram e passaram o dia pastando no quintal. São seres que ninguém vê a não ser eu, meu marido, as visitas e o gato.
Queria que todos vissem, por isso escrevo. Tenho a esperança de que estas minhas experiências, tão maiores do que o meu corpo, possam se transformar num outro tipo de experiência através de palavras, já sabendo que o destino inevitável da minha tradução é
falhar.
É por uma razão misteriosa que escrevemos.
Nota mental para mim mesma: um livro é só a ponta. Ser artista ou escritor é habitar um mundo maior do que o texto escrito. O texto começa a ser escrito antes de aparecer na página. Quando faço omelete ou corto a grama. Quando faço coisas que ninguém vê e que vou esquecer antes do dia terminar.
Comecei a escrever esta Newsletter no dia em que assisti o vídeo. Uma semana depois, a mesma amiga me enviou uma foto de Phyllida ao lado de uma mensagem:
Veja só, aquela doce artista e professora que mal conhecemos acaba de partir.
R.I.P Phyllida Barlow, 1944 - 12/03/2023.
É provável que os diários, os rascunhos, os esboços e as coisas que não se mostram se comuniquem invisivelmente
numa língua própria
sem a nossa presença.
A julgar pelas gavetas entupidas de desenhos e textos inacabados no meu atelier, vivemos na superfície de um território vivo
maior
mais silencioso
cheio de criações novas a ponto de aparecer.
É só impressão minha ou o mundo virou uma grande lojinha? Pelas estantes virtuais, as fotos e as notícias que nos enviamos são uma exibição impositiva de mensagens visíveis. Nas imagens e nas legendas que usamos para nos comunicar, encontro uma busca pelo sentido mais fácil de ser lido, precificado em cores vibrantes
: estou feliz
: conheça meu gato
: esta é a torre Eiffel
: ontem me pediram em casamento
Então me dá alegria lembrar dos deuses das coisas não ditas. Silenciosos e pacientes, estes deuses continuam guardando aquilo que nunca será falado
espalhando uma voz que não se escuta
numa língua que não compreendemos
pelos canteiros de flores cor-de-rosa que jamais serão visitados.
Um poema
A arca
estou lendo um livro mas não me estou livrando
dele. cada página virada cobre-me uma camada
leve e resistente de papier-marché.
uma vontade maior me fala.
eu fico quieto ouvindo as coisas que devo
escrever. eu ouço com a ponta dos dedos.
eu também vou escrever porque quero conhecer
o mistério que sou, o mistério que é cada coisa
viva, toda coisa que se move.
estou transferindo a biblioteca do meu quarto
para dentro de mim, eu estou mudando o mundo
para dentro de mim.
eu viajo, saio do meu país para encontrar
as melhores coisas para levar para dentro de mim.
(Rollo de Resende, poeta paranaense, 1965-1995. Alguns poemas dele você encontra aqui, nesta edição da Revista Mallamargens)
Notinhas
* As ilustrações dessa edição são esboços do meu caderno de rascunhos de 2020.
* Você pode assistir o vídeo da Phyllida Barlow aqui (legendas em português disponíveis). O trecho que menciono aqui na Newsletter começa em 03:08.
* O Sofá da Surina é uma Newsletter que chega até você aos sábados de manhã, 3 vezes por mês. Sábado que vem é o último de março, dia de descanso do Sofá. Isto quer dizer que nos vemos de novo no dia 1 de abril.
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Lindo, Surina. Tenho mais de 30 diários, escrevo desde os 15. São 20 anos em páginas. Me mudei de país ano passado. Eles ficaram guardados em uma caixa na casa da minha mãe e permanecerão no jardim das criações invisíveis. <3 Achei uma forma tão linda de enxergá-los.
ai surina. já considero visitar sua casa e nem te conheço. (espero que isso não soe inapropriado rs). não conhecia a escultora. ainda não vi o vídeo. mas li o obituário no the guardian. afe. ela se fascinava com o danificado. o degradado. o refazer. o regenerar. ❤️e tinha paretensco distante com darwin. que pessoas. você e ela. obrigado por mais uma leitura de sábado.