1. É inverno por aqui. Faz frio, chove. Uma amiga contou que as árvores em Portugal continuam sem folhas. Se me perguntarem se é mesmo verdade, não saberei dizer. Faz um mês que não tiro o nariz para fora da porta.
2. Tudo é paisagem de dentro - fogão, geladeira, pia, toalha. Porta-incenso, vela queimando, o casaco de onça cor-de-rosa pendurado. O lado de fora, por outro lado, só me é acessível por alguma forma de janela, jamais de corpo inteiro. Da imensa moldura de vidro do hospital, notei as obras de um ridículo shopping em construção. No apartamento da minha recuperação, descobri que Lisboa é um pouco Índia porque tem um monte de prédios coloridos. Agora, de volta ao Alentejo, percebo que os gatos sobem todos os dias na mesma árvore do quintal.
3. Não posso: sentar, abaixar, deitar de lado ou de bruços.
Não posso: cozinhar, limpar, varrer, levar peso, lavar a louça.
Posso: deitar de barriga para cima na cama ou no sofá.
Posso: caminhar dentro de casa por 5 minutos, uma vez por hora.
Não posso: pegar os gatos no colo. Mas eu pego mesmo assim.
5. Não deixa de ser uma condição interessante para uma taurina com ascendente em áries que adora fazer coisas. Nesta altura eu já devia estar lavando as primeiras panelas, mas tive uma hemorragia depois de ser operada, por isso o período de repouso se estendeu. Sou impedida de fazer quase tudo. É como se tivessem removido à força a ideia de que tenho qualquer tipo de ingerência sobre o mundo.
6. No lugar da ação, receptividade. Minha principal obrigação com a existência consiste em esperar o trabalho silencioso do tempo - agora é aceitar o corpo exercendo a ingerência dele sobre mim. Enquanto escrevo, sete camadas de tecido se regeneram dentro da cavidade abdominal e os órgãos se esticam e comprimem tentando se ajeitar uns sobre os outros sem a presença do útero que partiu. Quase não me mexo. Nada a fazer, exceto permitir que o corpo estenda seus poderes mágicos sobre si. Sobre mim.
8. Não posso: pensar rápido, escrever mais de meia hora por vez, pintar.
Não posso: me preocupar demais (“stress prejudica”, a médica alertou).
Posso: deitar, dormir, comer.
Posso: fazer um curso sobre Florais de Bach.
9. A vida da não-ação é uma estrada feita de eventos e sensibilidades que eu até então desconhecia. Se esbarro numa caixa da geladeira e meia dúzia de tomates caem no chão, os tomates ficam lá até a próxima cuidadora aparecer. Se alguém desmarca a visita da noite, fico sem aquecimento no fogão a lenha (mas sempre tem um cobertor).
- Querida, tem um rato sem cabeça ali atrás do tapete. É assim mesmo?
(a amiga comenta)
- Putamerda, foi o gato que trouxe outra vez.
-Onde fica o material de limpeza? Daí já aproveito para limpar o sangue que grudou no chão.
11. Um grupo de amigas se reveza nos cuidados. Nenhuma se parece com a outra e cada visita é diferente. Há as que querem conversar e as que ficam quietas. Gosto das duas possibilidades igualmente. Algumas dão uma passadinha rápida, lavam a louça e vazam. Teve uma amiga, por exemplo, que veio só para passar um aspirador (bendita seja). A outra me ajuda a secar a perna e colocar meias kendall depois do banho. Minha amiga portuguesa aproveita as visitas para pedir opinião sobre umas traduções de poemas do inglês que ela está fazendo.
12. As amigas contam histórias. Eu conto histórias. Nunca me senti tão próxima delas. Nunca nos encontramos tanto em tão pouco espaço de tempo. Ouço sobre separações e sobre o cultivo de suculentas. Ouço. É uma proximidade diferente. Tipo uma cumplicidade. Tipo uma irmandade. Esses dias ficam marcados no tempo como algo sagrado porque atestam o poder curativo do amor e a indiscutível presença da benevolência neste mundo esquisito. E isto é muito bonito, e agora eu sei que é real, não podem tirar de mim porque é minha experiência. Ninguém me contou.
13. É claro que penso sobre a continuidade entre este tempo de não-ação e as práticas espirituais. Lembro dos inúmeros retiros de que participei: a decisão de ir a algum lugar para conhecer a mente. Observá-la, permitir que se mostre sem interferências. Deixar que os seus conteúdos se apresentem, flutuando no espaço do céu, passem, voltem. Guardadas as devidas proporções, deito no sofá como quem senta na almofada de meditação. Não fazer nada; deixar as coisas serem como são. Obrigada por tirar o rato sem cabeça, nem tinha visto. O futuro agora é incerto.
14. E não é verdade que ele sempre foi?
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Feliz 8 de março:
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Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Ainda bem que você pode ler e escrever, querida Surina.
Queria que você estivesse na Asa Norte e eu pudesse te levar um bolo reconfortante de maçãs!