Querida leitora, querido leitor, esta é uma carta do meu passado escrita para o seu presente.
Hoje é dia 24 de janeiro, dez e vinte e nove da noite, e estou deitada na cama com meu gato cinza. Hoje também faltam dez dias para minha cirurgia, que vai acontecer no dia 4 de fevereiro num hospital de Lisboa.
Olha só como o tempo é uma dimensão maleável: quando você estiver recebendo esta mensagem, a cirurgia já terá terminado e eu provavelmente ainda estarei na capital portuguesa me recuperando para só então poder voltar à minha casa, em São Martinho das Amoreiras.
Mas não sabemos. Pode ser que eu tenha morrido, por exemplo, então este será um texto póstumo e eu aparecei como uma espécie de fantasma na sua caixa de email.
É improvável, mas não é impossível.
Por enquanto, tudo que posso prever não passa de uma suposição sobre o futuro que você vai ler no seu presente com as minhas reflexões do passado. O horizonte se apresenta como um enigma, e é assim, neste espírito quântico e misterioso, que esta edição vai sendo escrita.
Espero que você tenha paciência comigo.
De acordo com a médica, terei que passar de 4 a 6 semanas em repouso. Não tenho ideia de qual será minha condição física no dia previsto para esta edição do Sofá. Por ora não dá pra saber se poderei me reclinar para escrever, nem se estarei no hospital ou na minha própria cama. Por isso, então, vou escrevendo as próximas edições para adiantar o tempo.
Confesso que é uma sensação esquisita, e aproveito para contar um segredo. Tenho muitos rascunhos prontos, mas sempre ajeito as edições do Sofá bem perto do envio, ajustadas ao meu estado presente.
A princípio não se trata de nada grave. É uma cirurgia simples que adiei por muitos anos até que se tornou inevitável - alguns órgãos do meu corpo passaram a funcionar mal por causa dos muitos (muitos muitos) miomas que habitam o meu útero.
Tive minhas razões para procrastinar a intervenção cirúrgica. Além do medo de operação, adiei porque gosto da ideia de ter um útero, mesmo que o meu seja incapaz de realizar a função de procriar. Nunca desejei ser mãe, não me sinto mais mulher por conta dele e nem tive a chance de entrar em contato com energias criadoras associadas a este órgão, muito embora aceite que possam haver ligações ainda desconhecidas entre o cérebro e outras partes do nosso corpo.
Minha hesitação tem outra causa. Ela tem mais a ver com uma espécie de amizade fisiológica.
Meus órgãos convivem juntos na cavidade abdominal há tanto tempo... Pode ser estranho quando um deles não estiver mais por lá. Ficavam todos ali, encostados uns nos outros, exatamente como os meus gatos no frio: dormindo escorados. A bexiga, o reto, todo mundo junto. Agora um pedaço se vai. Será que vou sentir um vazio?
E o que é que fazem com um útero que sai da nossa barriga depois que a cirurgia termina?
Até onde me consta, ainda não inventaram transplante de útero, e mesmo que existisse não me parece que outra paciente gostaria de receber um útero cheio de miomas como o meu. Inútil para todos os outros seres humanos, completamente querido por mim:
meu útero, que eu gostaria que sendo removido do meu corpo tivesse o destino de tornar-se objeto de estudos clínicos para estudantes de medicina. Talvez assim ele pudesse beneficiar outros, mas no fundo sei que esta é uma história que inventei para me distrair do fato mais provável. Possivelmente o meu útero, este meu útero que esteve comigo há 44 anos e que (segundo o título do livro da Angélica Freitas) tem o tamanho de um punho fechado
este meu útero vai terminar num contentor de plástico hermeticamente vedado com as recomendações pertinentes
– Perigoso : Lixo hospitalar -
- O que você acha que vão fazer com meu útero depois da cirurgia, Lee?
- Boa pergunta. Lá na Inglaterra os médicos entregaram as minhas amídalas dentro de um pote de vidro para eu levar pra casa depois da cirurgia. Lembro até hoje: elas estavam boiando num líquido transparente.
Agora vamos dar um zoom na imagem apresentada pelo meu marido: amídalas num pote para ficar de lembrança.
Este samsara não é mesmo um sonho absurdo?
Ainda o Lee em modo surrealista:
- Você pode pedir pra médica colocar num potinho e aí a gente traz ele para casa.
Quando você receber esta mensagem, o mais provável é que a cirurgia já tenha acontecido e que eu esteja começando minha longa fase de recuperação. Estarei sendo cuidada pelo meu marido, este mesmo marido que sugeriu que me colocassem o útero numa conserva (suspiro).
Agora uma nova relação paciente-cuidadora irá se sobrepor ao nosso vínculo marido e mulher. Estou curiosa para saber como será esta nova ligação. Antes fomos namorados, antes de namorados fomos amigos, agora ele terá que me dar banho e me ajudar a vestir meias kendall por duas semanas.
Quando você receber esta mensagem, muito provavelmente estarei tricotando e lendo os livros que selecionei para a temporada na cama. Isso tem um quê de paraíso - o primeiro da lista é o Clube dos Jardineiros de Fumaça, da Carol Bensimon. Possivelmente estarei nas primeiras páginas, mas pode ser, também
pode ser que não. Pode ser que ainda não tenha me levantado da cama de cirurgia e agora esteja lá, no hospital, me recuperando de alguma pequena complicação.
Ou pode ser que os remédios dêem muito sono e eu desista do livro antes da página 10.
Pode ser que eu prefira poesia, ou que passe os dias jogando
tarô. Talvez meu marido não aguente mais ficar comigo o tempo todo e agora uma amiga tenha vindo substitui-lo. Será que continuamos juntos, aliás? A cirurgia e a minha necessidade de cuidados pode ter exposto as fraturas antigas que tivemos tanto sucesso em esconder até agora, exatamente como a rachadura no piso de casa que ninguém além de nós jamais viu, mas que sabemos
: cresceu bastante desde a construção, oculta sob o sofá de dois lugares. Pode ser que a anestesia geral tenha criado um curto-circuito no meu cérebro e que os remédios, misturados com meus anos de meditação, tenham aberto o meu ser para novas dimensões da consciência e a autora que você esteja lendo agora já tenha desaparecido, substituída por uma nova Surina. E que este texto não seja mais nada do que o fóssil de alguém que já partiu, substituída por uma nova mulher, expandida e iluminada.
Tudo é possível.
Dizem que o samsara é um lugar de sofrimento. Mas os budistas dizem, também, que a vida humana é preciosa e que nascer neste corpo é se abrir para possibilidades maravilhosas de transformação transcendental.
É impossível saber o que vai acontecer na cirurgia. Tipo pegar um avião. As estatísticas estão do meu lado, vai dar tudo certo e quando chegar do outro lado a sua qualidade de vida vai melhorar um monte , você vai ver.
Não deixa de ser bonito, entretanto, abraçar o imponderável e aceitar o presente que este momento traz - uma perspectiva sóbria desta nossa vida. No fundo a gente pratica na almofada de meditação para viver com mais lucidez. Tudo pode acontecer o tempo todo, em todas as direções.
À luz desta revelação, o desejo de sempre aqui aparece como talvez o maior acerto desta Newsletter
: que vocês sejam felizes, sempre.
Notinhas
Este é um texto muito pessoal e pensei bastante se deveria publicá-lo, mas a folha foi sendo preenchida com tanta facilidade que não pude deixar de notar que vinha do desejo de dividir estas reflexões em vez de deixá-las no diário. De qualquer forma, quero remover qualquer preocupação: tá tudo bem deste lado. É só mesmo a vontade de aproveitar este momento especial para olhar com carinho para o coração da existência e abraçar as transformações que viver nos reserva.
Todas as pinturas que ilustram o Sofá (inclusive a de hoje, que eu adoro) são obras minhas que estão à venda. As prints das obras são produzidas em estúdios bem especiais seguindo os padrões de galerias e colecionadores, depois assinadas em tiragens limitadas. Entregas para o Brasil e para a Europa. Detalhes e encomendas por email - surinamariana@gmail.com
Sou autora de dois livros. Em formato físico, você encontra o 108 e O mundo sem anéis - aqui (entregas para todo o Brasil). Se preferir Kindle, você encontra meus dois livros no site da Amazon Brasil.
Recomendações
Aproveitando o flow, fica aqui a recomendação destas duas edições lindas:
Ah! E que vocês sejam felizes, sempre. Até a próxima,
Na próxima encadernação, prefira vir sapata. A recuperação de uma histerectomia com outra mulher é bem mais tranquila. Digo isso de cátedra.
Querida, foi muito bonito te ler. Estaremos aqui, neste presente sem data, aguardando suas notícias de recuperação (que virão) e outros poemas. Todo amor do mundo pra ti ❤️